segunda-feira, 2 de junho de 2014

Apetites e reforma


Luís Naves
A retórica dos políticos tem servido para criar muitos equívocos sobre a União Europeia. Quando há crises, os dirigentes nacionais tendem a culpar Bruxelas, essa entidade difusa que, segundo o mito, se limita a determinar a cor da manteiga e a dimensão das bananas. Quando a situação melhora, nunca é mérito da integração na Europa. E, no entanto, o que seria de Portugal sem os fundos europeus que nos fizeram dar um salto brutal nos últimos 30 anos? Esta pergunta podia ser feita em qualquer país; os modelos sociais estão em crise, a economia estagnou, mas não estaria toda a gente muito pior sem mercado único?

A União Europeia é uma organização que recebeu determinadas competências dos Estados para realizar uma função: criar um espaço de desenvolvimento, liberdade e segurança, com livre circulação de bens, pessoas e capitais. As regras são definidas por tratados e negociadas em permanência, mas nas eleições da semana passada houve um choque e a UE entrou claramente numa fase de profunda crise. O voto anti-UE elegeu um em cada seis deputados do Parlamento Europeu.

O Reino Unido pode sair em breve e não há aparente solução para manter regiões como Escócia, Flandres ou Catalunha, caso estas decidam separar-se dos países a que pertencem. Durante a crise financeira, no interior da zona euro, houve decisões que fizeram tangentes aos tratados, nomeadamente os resgates (incluindo o português), que deram origem a uma situação absurda: os países resgatados estavam dos dois lados da mesa de negociações, pois eram devedores e membros da União Europeia, organização que representava os países e os credores e que tinha dois elementos na troika.

Nos países do sul, o descontentamento com a austeridade poderá explicar uma parte da rebelião eleitoral que se traduziu na subida dos radicais e dos populistas anti-integração europeia, mas foi sobretudo uma retórica soberanista que inspirou tantos eleitores franceses, britânicos ou dinamarqueses: partidos anti-europeus de direita venceram as eleições nestes três países. Nas suas versões de extrema-direita, populista, euro-descontente, abertamente euro-céptica ou ainda radical e comunista, os partidos que contestam a actual UE tiveram votações impressionantes em Itália, Polónia, Alemanha, Holanda, Finlândia, República Checa, Hungria, Irlanda, Grécia, geralmente entre um terço e um sexto do eleitorado.

Tentei argumentar num post anterior e na respectiva caixa de comentários, que os eleitores manifestaram grande descontentamento em relação ao que consideram ser a apropriação pelas instituições europeias de poderes que deviam pertencer aos Estados. Esta é a explicação mais simples para a votação no UKIP britânico, na AfD alemã, no movimento de Beppe Grilo ou até na vitória de Marine Le Pen, que fez uma campanha contra a imigração e contra o euro.

Os partidos tradicionais têm de perceber que os eleitorados desconfiam de instituições internacionais que não controlam e que não respondem perante os seus parlamentos (o caso francês é singular, pois a Frente Nacional não tem representação parlamentar e quer uma mudança na lei eleitoral interna). Essas instituições internacionais, por seu turno, têm tendência para expandir os seus poderes e os últimos anos assim demonstram: a comissão interfere frequentemente na política nacional e força governos a alterar leis aprovadas pelos parlamentos; o conselho actua frequentemente em directório, com encontros em petit comité e decisões nas costas dos pequenos. Os resgates foram um caso extremo de redução de soberania. O parlamento está a transformar-se num gigante mais parecido com Gargântua ou Pantagruel, incapazes de refrear o seu apetite, neste caso por poder.

Os partidos nacionais fazem listas de eurodeputados com figuras de segunda linha e os eleitores votam em protestos nacionais muito diferentes das votações legislativas. Assim, está a criar-se um fosso cada vez maior entre a representatividade do conselho e a do parlamento.

No fundo, a Europa precisa de uma reforma que permita devolver poderes aos parlamentos nacionais e, ao mesmo tempo, eliminar as deficiências que se tornaram bem evidentes na crise ucraniana, por não existir uma política externa mais coerente entre as potências ou por não estar definida uma política de energia. Não faz sentido que os europeus se sintam vítimas da chantagem de uma potência que tem a dimensão económica da França.

A UE pertence aos Estados e o interesse destes implica o reforço da organização em áreas que permitam tornar os europeus mais fortes. A não-Europa representa um retrocesso sem precedentes: o pesadelo do nacionalismo irracional e o regresso aos fantasmas do passado. No entanto, as ilusões federalistas têm os mesmos perigos, pois conduzem, a prazo, à dissolução da UE e ao triunfo dos populistas.
Título, Imagem e Texto: Luís Naves, Fragmentário, 02-06-2014

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