Aparecido Raimundo de Souza
O CHICÃO BEIÇO DOURADO, professor de artes marciais, ficou maravilhado quando ao passar em
frente a um Pet-Shopp na Rua Vinte e Cinco de Março, nas imediações da Praça da
Sé (loja bastante sortida que vendia produtos para passarinhos e outros
animais), se deparou com um cartaz onde anunciava a venda de um papagaio que
falava três línguas distintas: inglês, francês e alemão. E ainda arranhava o
japonês. Lula (esse era o nome da ave) havia lido toda a obra do português José
Saramago, Jojo Moyes, assoviava todas as músicas de Roberto Carlos, recitava
Carlos Drummond de Andrade, e, para completar seu curriculum vitae, imitava os
artistas mais famosos da Rede Globo.
Chicão Beiço Dourado não pensou duas vezes. Entrou correndo e fez a
aquisição do tal louro. Como a ave tinha todos esses atributos, precisou dar
uma entrada em dinheiro, entrada essa representada por um cheque no valor de
três mil reais como caução para segurar o negócio e retornar dia seguinte, com
o restante do dinheiro, ou seja, enquanto se dirigia até o seu banco, no bairro
da Casa Verde, para fazer um empréstimo pessoal de doze mil reais. Fechado
definitivamente o negócio, o que lhe custou a bagatela de quinze mil reais,
pode, finalmente, levar o belo verde de fronte-azul para seu novo lar.
Logo que chegou à sua residência, chamou a esposa, os filhos, convocou os
amigos, os pais dos alunos da academia e todos os vizinhos. Chicão, além de
bamba em artes marciais, possuía um conhecimento fabuloso na periferia. Morava
há mais de trinta anos na mesma casa, edificada na Rua Águas Virtuosas e sem
mais delongas, o povaréu reunido tira gosto e cerveja rolando solto, passou a
entabular com Lula, pedindo que o louro falasse alguma coisa, a despeito do que
lera no cartaz e não só lera, ouvira da boca do proprietário da loja e de seus
cinco empregados. Todavia, Lula se absteve quieto e retraído. Nessa lengalenga,
se passaram quinze dias, e o papagaio nada de dar sinais da sua sabedoria
excepcional.
- Lula, meu lourinho, fala aqui para o papai, eu te amo em francês. Olha
para o rostinho da minha esposa e manda vê. Vamos, solta a voz...
Lula simplesmente se prestava a olhar desconfiado para a criatura, para a
esposa e seguia no seu canto, taciturno e arisco, como se estivesse tentando
reconhecer aqueles rostos de algum lugar. A mulher do Chicão, por algum motivo,
lembrava um pouco a Dilma. No mais...
- Bichinho fofo, recita qualquer coisa de Carlos Drummond de Andrade.
Lula assovia Amada Amante do Roberto Carlos...
Um mês e Lula desanimado. Às vezes tentava bicar o Chicão quando o cara
tagarelava demais em seus ouvidos.
- Ai, ai, ai... Olha a malcriação! Olha a malcriação! Imita a Regina
Duarte, não o Paulo Betti, a Dercy Gonçalves... Esquece: prefiro o Lineu de A
Grande Família...
Qual o quê! Lula se adstringia a andar de um lado para outro, impaciente,
só se deslocando do seu canto preferido para as refeições diárias que também
mexiam com força nos bolsos do patriarca. Dois meses e o silêncio sepulcral
prevalecia angustioso.
- Lula, imita o Faustão... O Falabella, o Bonner, a Fatima Bernardes...
Porra, a Ana Maria Braga. Infeliz, dos
infernos, faça valer a pena a grana violenta que dei para lhe trazer para cá...
E tome tentativas de bicadas e mais bicadas.
- Olha a malcriação, olha a malcriação!
Nada mudava para melhor. Parecia
que o Chicão Beiço Dourado comadreava com as paredes. Lula, por seu turno, se
mantinha indomável, ou melhor, tentava de todas as formas usar seu bico
objetivando dar umas beliscadelas em seu mais novo e patético amo e guardião. Emputecido
dentro das roupas em face de três meses passados, retornou à loja de animais e
exigiu seu rico dinheirinho e volta:
- Senhor, impossível tal procedimento. O senhor assinou um contrato, está
lembrado?
- Claro, mas o peste do Lula não fala, não canta, não toca, não recita,
não assovia, enfim... Acho que perdeu a língua... Se ao menos governasse nossa
família nos proporcionando boas e sonoras gargalhadas...
O proprietário, na maior calma do mundo voltava a explicar que nada podia
fazer. Chicão Beiço Dourado saiu triste e cabisbaixo. Não desistiu. Voltou dia
seguinte e depois, e depois, e depois, até que, da última, perdeu as
composturas da estribeira. Disse que traria, a tiracolo, uma “patotinha de
professores faixas-preta do seu bairro” e quebraria a loja do sujeito. Meteria
“porrada” nos vendedores, e, ainda por cima, daria queixa na delegacia mais
próxima.
- Vou sair daqui... Antes, meu ilustre cavalheiro, ponho fogo nessa
merda...
Para evitar problemas maiores, o dono teve uma ideia:
- Senhor, o que posso fazer para lhe ajudar é pegar o Lula de volta, e
para amenizar seu suposto prejuízo, veja bem, suposto, lhe reembolsar, dos meus
fundos, três mil reais. Se meu sócio souber... Como se passaram noventa dias, o
senhor ainda sairá levando mil reais referentes a cada mês que o papagaio ficou
fora de circulação. Em razão disso, deixei de vendê-lo a outro. Tirando essa
ajuda, infelizmente, nada mais poderei fazer. Olha o tempo, olha o tempo. Três
meses, três meses...
Em face dessa situação vexatória e temendo que o mão de vaca mudasse de
ideia, Chicão Beiço Dourado aquiesceu. Devolveu o papagaio e pegou os três mil
reais. Ato contínuo colocou a grana no bolso e se dirigiu para a porta. Afinal,
visto pelo lado prático, um jeito de diminuir um bocado o prejuízo que tivera
com a aquisição do lindo e emplumado Psittacidae. Sem contar que arcava com o
empréstimo do banco em suaves prestações mensais num total de vinte e quatro
parcelas.
Antes de abandonar totalmente a loja, Chicão se embrenhou por outra seção
(ao acaso) ficando, pôr questão de alguns minutos, longe dos olhares curiosos
do senhorio. Apenas os empregados. Esses, entretanto, gracejando com as moças
que passavam, ao largo, na calçada, não estavam nem aí. Foi quando... Foi
quando escutou o inusitado. O inacreditável. Chicão, de pronto, pasmou. Abriu a
boca, atônito. O papagaio Lula iniciou uma discussão ferrenha com o dono da
loja pensando, evidentemente que o pobre e ex-comprador, até aquele momento
ludibriado, não estivesse mais pelos arredores.
- Seu pilantra. Ladrão safado – berrou o louro brabo e colérico. - Vendeu
meus préstimos para esse Mané otário por quinze mil reais e mentiu dizendo que
foi por quinhentos reais? - Seu filho de uma égua. Quero a metade a que fiz jus
por direito. Sete mil duzentos e cinquenta reais. Vamos, abra o cofre e me
passe a grana ou botarei a boca, digo, o bico no trombone. Abra a droga do
cofre... Não esqueça que sei de todos os seus podres e trambiques. Vagabundo,
embusteiro. Não tenho o dia todo... Quer apodrecer na cadeia? Isso sem falar no
chato do Chicão... Fala isso, cante aquilo... Assovie a puta que pariu! Um
porre... Só eu sei o que passei... Vamos, manda o “faz-me rir”.
Ao ouvir essa conversa “foradeesquadreada”, Chicão Beiço Dourado trêmulo
e passado, pegou seu telefone celular e começou a gravar, se esgueirando, de
mansinho por entre uma centena de gaiolas de passarinhos, pombos, araras,
galinhas e pintinhos, além de uma infinidade de produtos expostos para comercialização.
Enquanto registrava cada palavra, o sangue fervia nas veias. De repente, subiu
nas tamancas. Fora de si, chutou o pau da barraca. Pegou o proprietário pelo
gogó e o papagaio idem, ambos de calças curtas. Fora do juízo, além das tapas e
safanões, pernadas e petelecos distribuídos como balas perdidas, destruiu o
recinto, deixando o imprestável. Um dos empregados deu sorte e conseguiu fugir
do bafafá. A fuça vermelha de tanto apanhar, correu e acionou a Guarda
Municipal. De repente, a Rua Vinte e Cinco de Março virou um inferno. Polícia e
gente, curiosos e bisbilhoteiros, se acotovelando. Com a chegada dos fardados,
dono da loja, papagaio, Chicão Beiço Dourado e funcionários foram encaminhados
para o 8º Distrito Policial, na Mooca.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, da Lagoa
Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 15-10-2019
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