terça-feira, 15 de outubro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Um papagaio difícil de levar no bico

Aparecido Raimundo de Souza

O CHICÃO BEIÇO DOURADO, professor de artes marciais, ficou maravilhado quando ao passar em frente a um Pet-Shopp na Rua Vinte e Cinco de Março, nas imediações da Praça da Sé (loja bastante sortida que vendia produtos para passarinhos e outros animais), se deparou com um cartaz onde anunciava a venda de um papagaio que falava três línguas distintas: inglês, francês e alemão. E ainda arranhava o japonês. Lula (esse era o nome da ave) havia lido toda a obra do português José Saramago, Jojo Moyes, assoviava todas as músicas de Roberto Carlos, recitava Carlos Drummond de Andrade, e, para completar seu curriculum vitae, imitava os artistas mais famosos da Rede Globo.

Chicão Beiço Dourado não pensou duas vezes. Entrou correndo e fez a aquisição do tal louro. Como a ave tinha todos esses atributos, precisou dar uma entrada em dinheiro, entrada essa representada por um cheque no valor de três mil reais como caução para segurar o negócio e retornar dia seguinte, com o restante do dinheiro, ou seja, enquanto se dirigia até o seu banco, no bairro da Casa Verde, para fazer um empréstimo pessoal de doze mil reais. Fechado definitivamente o negócio, o que lhe custou a bagatela de quinze mil reais, pode, finalmente, levar o belo verde de fronte-azul para seu novo lar.

Logo que chegou à sua residência, chamou a esposa, os filhos, convocou os amigos, os pais dos alunos da academia e todos os vizinhos. Chicão, além de bamba em artes marciais, possuía um conhecimento fabuloso na periferia. Morava há mais de trinta anos na mesma casa, edificada na Rua Águas Virtuosas e sem mais delongas, o povaréu reunido tira gosto e cerveja rolando solto, passou a entabular com Lula, pedindo que o louro falasse alguma coisa, a despeito do que lera no cartaz e não só lera, ouvira da boca do proprietário da loja e de seus cinco empregados. Todavia, Lula se absteve quieto e retraído. Nessa lengalenga, se passaram quinze dias, e o papagaio nada de dar sinais da sua sabedoria excepcional.


- Lula, meu lourinho, fala aqui para o papai, eu te amo em francês. Olha para o rostinho da minha esposa e manda vê. Vamos, solta a voz...

Lula simplesmente se prestava a olhar desconfiado para a criatura, para a esposa e seguia no seu canto, taciturno e arisco, como se estivesse tentando reconhecer aqueles rostos de algum lugar. A mulher do Chicão, por algum motivo, lembrava um pouco a Dilma. No mais... 
    
- Bichinho fofo, recita qualquer coisa de Carlos Drummond de Andrade. Lula assovia Amada Amante do Roberto Carlos...
Um mês e Lula desanimado. Às vezes tentava bicar o Chicão quando o cara tagarelava demais em seus ouvidos.
- Ai, ai, ai... Olha a malcriação! Olha a malcriação! Imita a Regina Duarte, não o Paulo Betti, a Dercy Gonçalves... Esquece: prefiro o Lineu de A Grande Família...

Qual o quê! Lula se adstringia a andar de um lado para outro, impaciente, só se deslocando do seu canto preferido para as refeições diárias que também mexiam com força nos bolsos do patriarca. Dois meses e o silêncio sepulcral prevalecia angustioso.

- Lula, imita o Faustão... O Falabella, o Bonner, a Fatima Bernardes... Porra, a Ana Maria Braga.  Infeliz, dos infernos, faça valer a pena a grana violenta que dei para lhe trazer para cá... E tome tentativas de bicadas e mais bicadas.
- Olha a malcriação, olha a malcriação!

Nada mudava para melhor.  Parecia que o Chicão Beiço Dourado comadreava com as paredes. Lula, por seu turno, se mantinha indomável, ou melhor, tentava de todas as formas usar seu bico objetivando dar umas beliscadelas em seu mais novo e patético amo e guardião. Emputecido dentro das roupas em face de três meses passados, retornou à loja de animais e exigiu seu rico dinheirinho e volta:

- Senhor, impossível tal procedimento. O senhor assinou um contrato, está lembrado?
- Claro, mas o peste do Lula não fala, não canta, não toca, não recita, não assovia, enfim... Acho que perdeu a língua... Se ao menos governasse nossa família nos proporcionando boas e sonoras gargalhadas...

O proprietário, na maior calma do mundo voltava a explicar que nada podia fazer. Chicão Beiço Dourado saiu triste e cabisbaixo. Não desistiu. Voltou dia seguinte e depois, e depois, e depois, até que, da última, perdeu as composturas da estribeira. Disse que traria, a tiracolo, uma “patotinha de professores faixas-preta do seu bairro” e quebraria a loja do sujeito. Meteria “porrada” nos vendedores, e, ainda por cima, daria queixa na delegacia mais próxima.
- Vou sair daqui... Antes, meu ilustre cavalheiro, ponho fogo nessa merda...

Para evitar problemas maiores, o dono teve uma ideia:
- Senhor, o que posso fazer para lhe ajudar é pegar o Lula de volta, e para amenizar seu suposto prejuízo, veja bem, suposto, lhe reembolsar, dos meus fundos, três mil reais. Se meu sócio souber... Como se passaram noventa dias, o senhor ainda sairá levando mil reais referentes a cada mês que o papagaio ficou fora de circulação. Em razão disso, deixei de vendê-lo a outro. Tirando essa ajuda, infelizmente, nada mais poderei fazer. Olha o tempo, olha o tempo. Três meses, três meses...

Em face dessa situação vexatória e temendo que o mão de vaca mudasse de ideia, Chicão Beiço Dourado aquiesceu. Devolveu o papagaio e pegou os três mil reais. Ato contínuo colocou a grana no bolso e se dirigiu para a porta. Afinal, visto pelo lado prático, um jeito de diminuir um bocado o prejuízo que tivera com a aquisição do lindo e emplumado Psittacidae. Sem contar que arcava com o empréstimo do banco em suaves prestações mensais num total de vinte e quatro parcelas.

Antes de abandonar totalmente a loja, Chicão se embrenhou por outra seção (ao acaso) ficando, pôr questão de alguns minutos, longe dos olhares curiosos do senhorio. Apenas os empregados. Esses, entretanto, gracejando com as moças que passavam, ao largo, na calçada, não estavam nem aí. Foi quando... Foi quando escutou o inusitado. O inacreditável. Chicão, de pronto, pasmou. Abriu a boca, atônito. O papagaio Lula iniciou uma discussão ferrenha com o dono da loja pensando, evidentemente que o pobre e ex-comprador, até aquele momento ludibriado, não estivesse mais pelos arredores.

- Seu pilantra. Ladrão safado – berrou o louro brabo e colérico. - Vendeu meus préstimos para esse Mané otário por quinze mil reais e mentiu dizendo que foi por quinhentos reais? - Seu filho de uma égua. Quero a metade a que fiz jus por direito. Sete mil duzentos e cinquenta reais. Vamos, abra o cofre e me passe a grana ou botarei a boca, digo, o bico no trombone. Abra a droga do cofre... Não esqueça que sei de todos os seus podres e trambiques. Vagabundo, embusteiro. Não tenho o dia todo... Quer apodrecer na cadeia? Isso sem falar no chato do Chicão... Fala isso, cante aquilo... Assovie a puta que pariu! Um porre... Só eu sei o que passei... Vamos, manda o “faz-me rir”. 

Ao ouvir essa conversa “foradeesquadreada”, Chicão Beiço Dourado trêmulo e passado, pegou seu telefone celular e começou a gravar, se esgueirando, de mansinho por entre uma centena de gaiolas de passarinhos, pombos, araras, galinhas e pintinhos, além de uma infinidade de produtos expostos para comercialização. Enquanto registrava cada palavra, o sangue fervia nas veias. De repente, subiu nas tamancas. Fora de si, chutou o pau da barraca. Pegou o proprietário pelo gogó e o papagaio idem, ambos de calças curtas. Fora do juízo, além das tapas e safanões, pernadas e petelecos distribuídos como balas perdidas, destruiu o recinto, deixando o imprestável. Um dos empregados deu sorte e conseguiu fugir do bafafá. A fuça vermelha de tanto apanhar, correu e acionou a Guarda Municipal. De repente, a Rua Vinte e Cinco de Março virou um inferno. Polícia e gente, curiosos e bisbilhoteiros, se acotovelando. Com a chegada dos fardados, dono da loja, papagaio, Chicão Beiço Dourado e funcionários foram encaminhados para o 8º Distrito Policial, na Mooca.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 15-10-2019

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