quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

A década que não ousa dizer o seu nome

No mundo civilizado ou em vias de o ser, o capitalismo tem corrido bem, obrigado. E em Portugal? Nada de novo. Começamos a década com a típica bancarrota socialista.

Alberto Gonçalves

Dantes era fácil. Houve os loucos anos 20, os doidos anos 40, os chalupas anos 60, etc. Como é que chama à década que termina (sei que, na ausência do ano zero, a década só termina daqui a um ano, mas ponham as mariquices de lado por um instante e deixem-me continuar a crônica) agora? Não faço ideia. A década de 10 provoca confusões com a do século passado. Aliás, o conceito de década, assim toda arrumadinha e autônoma, parece ter nascido e se esgotado no século passado. Em pleno séc. XXI, como dizem os pasmados na televisão, os anos sucedem-se sem grande atenção a esses pormenores. Ainda assim, estão a completar-se 10 anos desde o início de 2010 e é de bom tom encher chouriços, e textos, com “resenhas” (ai) do período em causa. Eis, pois, a minha “resenha” das tendências destes anos 10, na perspectiva portuguesa que, por inclemência do Senhor e dos meus pais, é a que me calhou.

Aquecimento global. Depois as alterações climáticas. Num ápice, a emergência climática. Qualquer dia termos o holocausto meteorológico. Os sucessivos disfemismos pretendem convencer o mundo de que o mundo acabou anteontem. A solução passa por eliminar cada vestígio de progresso exceto o progresso necessário para os ativistas defenderem a eliminação de cada vestígio de progresso. Não admira que o símbolo do movimento seja uma criança iletrada e doente. Por cá, não há um partido – nem um – que não tenha adotado a lengalenga.

Nuvens. A Netflix, a HBO, a Amazon Prime e, se soubermos catar o que importa, cada vez mais o YouTube, tornaram obsoletas as televisões de antigamente. Hoje, no caso português, só vê a RTP, a TVI, a CMTV e a SIC quem quer. E quem quer realmente ver aquilo já tem, por definição, o castigo que merece. Além disso, o jornalismo tradicional, impresso em papel e vendido em banca, quase sumiu. Os discos sumiram. Os filmes que vinham numa caixinha sumiram. Os livros estão a sumir. O sujeito que conduzia o automóvel talvez suma em breve. Fora os rojões e os trapinhos (por enquanto), o mundo físico está a desaparecer. É grave? Apenas para os que sonham voltar à natureza, e registar a aventura num diário guardado na “nuvem”.

Politicamente correto. Não nasceu nesta década, ou sequer nos últimos séculos. A censura, a inquisição e a caça às bruxas são tradições ancestrais recuperadas recentemente com inegável sucesso. À conta de inúmeras “causas”, distorcidas ou fictícias, divide-se para reinar, vigia-se para oprimir, castiga-se para lavar as almas do Mal. Não sei como chegamos a semelhantes trevas. Convinha, se possível, saber como sair. Em Portugal, que não tarda nem falha na adesão à modernidade, já se calam e já se punem blasfemos sob o aplauso da turba.

Populismo. Não vale a pena perder tempo a debater a definição de populista: são os políticos de que a esquerda não gosta. Nos últimos anos, à semelhança dos anteriores, criaturas que apoiaram ou toleraram tiranos de gabarito irromperam aos gritinhos a anunciar o segundo advento de Hitler. Trump. Bolsonaro. Boris Johnson. Para certa direita, são todos iguais e encantadores. Para a esquerda em peso, são todos iguais e propensos a destruir a Terra em cinco minutos. Depois passam-se os minutos, os meses e os anos e, visto não acontecer nada, a esquerda passa ao Hitler seguinte. Parece impossível, mas o truque funciona.

Redes sociais. Deram montra ao maior conjunto de chalados da humanidade: a humanidade. Após incontáveis “selfies”, pratadas fartas, cachecóis do Benfica, gatinhos, termômetros do carro, árvores de Natal, frases erradamente atribuídas a Gandhi, criancinhas amorosas e desabafos escritos e pensados com os exatos pés que se perfilam junto à piscina, estamos esclarecidos quanto à sofisticação da espécie. Por sorte, as mesmas “redes” permitem manter a comunicação com a espécie a uma saudável distância. E há uma coisa pior do que dar voz a biliões de patetas: a voz dos milhares de patetas que antes detinham o exclusivo.

Terrorismo islâmico. Raramente é terrorismo e nunca é islâmico. Perdeu o carácter espetacular da década anterior e transformou-se em coisa pior: uma trivialidade. Pela Europa desenvolvida fora, não há dia sem que um jovem “belga” ou “sueco” com problemas de emprego e integração não ataque infiéis à machadada. E não é notícia – porque não é de bom tom e porque, de facto, a recorrência retira-lhe interesse.

Vida portuguesa. Não acreditem em pantomineiros profissionais. Nestes 10 anos, criou-se muita riqueza, diminuiu-se muito a pobreza, aumentou-se muito a esperança de vida, reduziu-se muito a mortalidade infantil etc. No mundo civilizado ou em vias de o ser, o capitalismo tem corrido bem, obrigado. E em Portugal? Nada de novo. Começamos a década com a típica bancarrota socialista. Prosseguimos com uma intervenção estrangeira para superar a bancarrota. Continuamos com interpretações sortidas da bonita “Grândola”. E concluímos com uma legislatura em que, para efeitos de experiência social, se adicionou ao socialismo os transtornados do leninismo. Entretanto, os portugueses perderam poder de compra, vibraram com a bola, pagaram mais impostos, vibraram com a bola, patrocinaram criminosos da banca, vibraram com a bola, toleraram criminosos e charlatães da política, vibraram com a bola, foram diária e metodicamente humilhados pelos avençados dos “media”, vibraram com a bola, viram a saúde pública escangalhar-se sem estrondo, vibraram com a bola, constataram que a educação abdicou em definitivo de educar, vibraram com a bola, assistiram indiferentes ao avanço do país para os fundilhos da Europa, vibraram com a bola. Ou com a “gastronomia”. Ou com o sol, que é tão lindo. Temos imensa sorte.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 28-12-2019

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