O trem da democracia à brasileira não tem
lugar para Sergio Moro, mas abriga num vagão da primeira classe comunistas,
farsantes e larápios
Augusto Nunes
A esquerda brasileira não se
une nem na cadeia”, ensinava uma das frases repetidas com a mesma convicção,
nos idos de 1968, tanto por inimigos quanto por partidários da ditadura
militar. Não aceitavam sequer dividir o mesmo beliche de cela os militantes do
Partido Comunista Brasileiro, do Partido Comunista do Brasil, da Ação Popular,
do PTB brizolista e de outras tribos que haviam sobrevivido à derrocada
ocorrida quatro anos antes. A coisa piorou quando a população carcerária passou
a incorporar guerrilheiros engajados em siglas que só tinham em comum o sonho
de derrubar a bala o inferno capitalista para substituí-lo pelo paraíso
comunista. Os combatentes da ALN, do VPR, da Colina, da VAR-Palmares, do Molipo
— e de tantos outros grupos armados sem densidade populacional para eleger um
vereador de vilarejo — preferiam morrer de fome a compartilhar um último prato
de comida. As diferenças que escavavam esses abismos eram assunto para os
líderes, que ao recuperarem o direito de ir e vir prosseguiam a guerra disputando
a supremacia nas ruas com mensagens em código aos manifestantes desinformados.
Tais mensagens nunca foram
decifradas pela “massa de manobra”, expressão usada pelo alto-comando para
referir-se à multidão de jovens anônimos, ingênuos, generosos. Todos repetíamos
palavras de ordem que vinham em ondas desde a vanguarda da passeata, ditadas
por vozes a serviço das facções em luta. Até que o AI-5 pulverizasse os sonhos
que na Passeata dos Cem Mil — que nunca foram 100.000 — pareceram ao alcance da
mão, a massa de manobra comunicou aos berros que o único instrumento para a
derrubada da ditadura seria “o povo organizado”, “o povo unido” e “o povo nas
ruas”. Só alguns anos mais tarde entendi que na mesma passeata, com igual
entusiasmo, eu havia apoiado alternadamente os caminhos traçados por simpáticos
fiéis do velho Partidão, por zangados devotos da linha chinesa e por carrancas
decididas a trocar a urna pela troca de chumbo. Os soldados rasos lutávamos
pela liberdade. Os comandantes planejavam suprimi-la. O rebanho sonhava com a
ressurreição da democracia. Os pastores queriam a ditadura do proletariado. A
confederação dos caciques queria chegar ao mesmo pântano, mas por estradas
distintas.
No faroeste à
brasileira, um magistrado que condena Lula é fascista
Havia naquele Brasil um
inimigo comum. As manifestações eram frequentemente de bom tamanho e a
soldadesca com o uniforme de revolucionário em gestação — calça jeans
desbotada, blusão de marinheiro e sapatos rústicos — costumava chegar a algum
inimigo em duas horas de conversa no botequim. As pedras no caminho eram a
vaidade arrogante e a intolerância da oficialidade. Se não conseguiam localizar
meia dúzia de objetivos comuns, como conseguiriam atrair brasileiros distantes
das universidades e dos apartamentos enfumaçados onde comandantes recém-saídos
da adolescência desenhavam os destinos do Brasil e do mundo? A esquerda
estrábica jamais se dispôs a examinar o portentoso acervo de equívocos que
cometeu durante o regime militar e continuaria a cometer depois de agrupada no
Partido dos Trabalhadores. O PT no poder se transformou numa seita que tinha em
Lula o seu único deus. Tinha e tem. Deus e Dono, reiterou o ex-presidente
presidiário neste crepúsculo de outono ao ser surpreendido pelo cortejo de
manifestos produzidos por inimigos do presidente Jair Bolsonaro.
A ideia original era juntar
numa frente ampla os que hostilizam o Grande Satã do momento, todos disfarçados
de defensores da democracia inconformados com o avanço do autoritarismo. Mas no
Brasil o passado não passa. E a esquerda mostrou que quem não se unia na cadeia
agora não consegue juntar-se nem mesmo num manifesto só contra Bolsonaro. Por
enquanto já são cinco, paridos por cinco grupos. O mais vistoso é o “Estamos
Juntos”, que reúne ex-presidentes da República, celebridades da TV,
jornalistas, intelectuais, artistas e políticos de diferentes colorações.
Os fundadores do clube pretendem reunir todos os que apoiam a democracia, mas até uma definição tão abrangente e espaçosa tem limites. Um dos motores do grupo demarcou a fronteira em entrevista ao Estadão: “Entrarão todos, menos os fascistas. Moro, fora. É o limite”. Na liderança da Operação Lava Jato, o juiz federal Sergio Moro ajudou a desbaratar o maior esquema corrupto de todos os tempos e, também, a mostrar que todos são iguais perante a lei, como determina a Constituição, e a recuperar bilhões de reais embolsados pelos quadrilheiros que saquearam a Petrobras. Teve confiscada a carteirinha de democrata porque também foi ministro da Justiça de Bolsonaro. No faroeste à brasileira, um magistrado que condena Lula é fascista. E o bandido engaiolado por corrupção vira preso político.
Os fundadores do clube pretendem reunir todos os que apoiam a democracia, mas até uma definição tão abrangente e espaçosa tem limites. Um dos motores do grupo demarcou a fronteira em entrevista ao Estadão: “Entrarão todos, menos os fascistas. Moro, fora. É o limite”. Na liderança da Operação Lava Jato, o juiz federal Sergio Moro ajudou a desbaratar o maior esquema corrupto de todos os tempos e, também, a mostrar que todos são iguais perante a lei, como determina a Constituição, e a recuperar bilhões de reais embolsados pelos quadrilheiros que saquearam a Petrobras. Teve confiscada a carteirinha de democrata porque também foi ministro da Justiça de Bolsonaro. No faroeste à brasileira, um magistrado que condena Lula é fascista. E o bandido engaiolado por corrupção vira preso político.
Fabricantes de
manifestos e jornalistas com missão a cumprir continuam sonhando com uma
segunda edição das Diretas-Já
O “Somos Democracia” reúne
integrantes das torcidas organizadas do futebol paulista. No mundo em que
vivem, não há lugar para torcedores rivais quando o mandante do jogo é o clube
que amam, quem aparece pela proa vestindo camisetas de outras cores vira
candidato a linchamento e, antes e depois da disputa no gramado, a paixão pelo
time que veneram é demonstrada com tiro, porrada e bomba. Tanto quanto hooligans ingleses
e barras bravas argentinos, muitos fariam bonito como
carcereiros de campo de concentração ou policiais da Itália fascista.
O apreço que têm pelo convívio dos contrários os transforma em clientes potenciais de Felipe Santa Cruz, presidente da OAB e um dos inspiradores do “Basta”, que aglutina operadores do Direito.
Fecham a fila o “#Somos 70 PorCento” e o “Direitos Já”, que tornou parceiros o presidente da Câmara dos Deputados e o governador do Maranhão. Rodrigo Maia é filiado ao DEM, Flávio Dino continua no PCdoB. A democracia de manifesto não tem lugar para Sergio Moro, mas reserva a um comunista sem cura uma poltrona no vagão da primeira classe.
O apreço que têm pelo convívio dos contrários os transforma em clientes potenciais de Felipe Santa Cruz, presidente da OAB e um dos inspiradores do “Basta”, que aglutina operadores do Direito.
Fecham a fila o “#Somos 70 PorCento” e o “Direitos Já”, que tornou parceiros o presidente da Câmara dos Deputados e o governador do Maranhão. Rodrigo Maia é filiado ao DEM, Flávio Dino continua no PCdoB. A democracia de manifesto não tem lugar para Sergio Moro, mas reserva a um comunista sem cura uma poltrona no vagão da primeira classe.
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Comício da Campanha Diretas Já no Largo da Prefeitura de Porto Alegre (1984) |
A Folha de S.Paulo já
começava a enxergar na enxurrada de assinaturas o início da reprise da campanha
das Diretas-Já, ocorrida entre março de 1983 e abril de 1984, quando Lula
resolveu mostrar quem manda no partido que virou bando. Numa gravação em vídeo,
ordenou a Gleisi Hoffmann que botasse ordem no templo das vestais reduzido a
casa de repouso de ex-presidiários. “Não tenho mais idade para ser maria vai
com as outras”, disse o mestre a seus discípulos. Depois de revelar que
recusara o convite para abrilhantar o desfile do “Estamos juntos”, em que
Fernando Haddad aparece na comissão de frente, explicou que alguém com o seu
prontuário tem o direito de escolher companhias. “Eu, sinceramente, não tenho
condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”,
confessou. Quem conhece a figura não se surpreendeu. Descontados os comícios
das Diretas-Já, quando teve de dividir o palco com políticos de maior estatura,
ele nunca abriu mão do papel de protagonista rodeado por coadjuvantes sem luz
própria e figurantes bisonhos. Expulsou do partido os súditos que votaram em
Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, obrigou a bancada a rejeitar a
Constituição de 1988, fez o diabo para impedir a aprovação do Plano Real e,
acampado no Planalto, fez o que fez.
Fabricantes de manifestos e
jornalistas com missão a cumprir continuam sonhando com uma segunda edição das
Diretas-Já. Alguma alma piedosa precisa lembrar-lhes que hoje há bandos de
arruaceiros nas ruas onde multidões de democratas genuínos exigiram a devolução
do direito de eleger o presidente. Que povo não rima com blackbloc nem
com antifa. Que homens honrados não dividem palanques com vigaristas
juramentados. Se nenhum desses lembretes fizer efeito, que tal refrescar a
memória da turma? Talvez valha a pena lembrar que a campanha das Diretas-Já foi
um dos mais belos movimentos cívicos do Brasil republicano. Mas a emenda
constitucional que restabelecia a escolha nas urnas do presidente da República
não conseguiu ser aprovada no Congresso.
Título e Texto: Augusto Nunes,
revista Oeste, 5-6-2020, 11h02
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