quarta-feira, 10 de junho de 2020

Conflito de gerações: Ouçam Bari Weiss

Ser a voz da sensatez num mundo de loucos requer a coragem de Weiss. A que todos, desde os que escrevem nos jornais aos que os leem, devemos ter por que dela depende o futuro da democracia.

André Abrantes Amaral

Bari Weiss [foto] é colunista do New York Times e não se deixa rotular. Num mundo em que nos querem reduzir a ser contra ou a favor de algo, Weiss surpreende dizendo o contrário do que é suposto. Não é feminista, mas escreveu um livro sobre como combater o anti-feminismo, fenômeno que encontra tanto na extrema-direita como na extrema-esquerda. Há quem a qualifique de conservadora embora Weiss se sentisse de esquerda quando trabalhava para o Wall Street Journal. Foi essa capacidade de surpreender que, apesar de apoiar o movimento #MeToo, a levou a escrever uma defesa de Aziz Ansari quando este foi acusado de assédio sexual.

Com a polarização política a que se assiste em todo o lado, principalmente nos EUA, é indispensável ler alguém como Bari Weiss. Ser a voz da sensatez num mundo de loucos requer coragem, e Weiss tem-na. Uma coragem que qualquer um de nós, desde os que escrevem nos jornais aos que os leem, devemos ter por que a democracia depende dela. O futuro da democracia depende da capacidade de pensarmos pela nossa cabeça, nos cultivarmos, lermos, analisarmos perspectivas contrárias e pesarmos os correspondentes prós e os contras. Não nos limitarmos aos títulos das notícias. Não nos limitarmos ao julgamento sumário do que nem sequer sabemos o que seja. Só dessa forma não vamos com a multidão.

Há dias Bari Weiss publicou no Twitter uma série de tweets sobre a guerra civil que estava a ter lugar na redacção NYT. Uma guerra que opõe a geração mais nova (menos de 40 anos) à mais velha (à qual Weiss, com 36 anos também pertence porque nada é apenas a preto e branco). Explica ela que enquanto os segundos, que apelida da Velha Guarda, vivem sob os princípios do liberalismo clássico e da liberdade expressão, os primeiros encaram essas mesmas liberdades como sendo direitos: o direito de certas pessoas não serem ofendidas nem que para tal se questione a liberdade de expressão. É uma guerra civil, de cariz cultural, que teve início nas universidades e chegou a jornais, como o NYT, porque os seus protagonistas já não são estudantes e começaram a ocupar lugares de destaque na democracia norte-americana.

A guerra civil que Weiss descreve estar a acontecer no NYT tornou-se evidente nestes dias depois da demissão do diretor de opinião daquele jornal, James Bennet. Bennet demitiu-se por ter permitido a publicação online de um artigo de opinião, no qual o senador republicano Tom Cotton defendia o envio dos militares para rua para pôr termo às manifestações violentas que estão a ter lugar nos EUA. Bennet foi forçado a proibir a publicação do artigo na versão em papel do jornal e, por fim, não teve outra alternativa que não se demitir.

De acordo com Weiss o que sucedeu foi algo para que já vinha a alertar há muito tempo, mas que esperava que levasse anos e não dias a concretizar-se: a chegada ao poder dos ativistas que dominaram os debates universitários nos últimos anos. Um bom argumento contra a intenção do senador Cotton seria dizer que o envio do exército para impor a ordem nas ruas equivaleria a aceitar que a reivindicação dos manifestantes de reformar a polícia é pertinente. No fundo, equivaleria a dar razão aos que se manifestam nas ruas. Seria comprovar que as forças policiais se tornaram opacas, dominadas por interesses corporativos, além de corruptas. Razões que podem explicar o racismo de muitos polícias.

O jornal, no entanto, em vez de rebater o argumento preferiu proibi-lo. Fê-lo influenciado pelos que não querem debater em nome do direito à não ofensa. Em vez de servir de meio de escape às tensões que se vivem na sociedade norte-americana o jornal preferiu esconder-se por trás da proibição e limpar a sua imagem através da demissão do seu editor de opinião.

Esta é uma das maiores ameaças do nosso tempo. A vandalização da estátua de Winston Churchill em Londres no dia 6 de junho (além de uma verdadeira ironia da história) é um sinal disso mesmo. É assustadora a forma como os pilares democracia ocidental estão a ser destruídos por dentro, ridicularizando e destruindo moralmente os que se oponham a que uns quantos decidam o que a maioria deve pensar e aceitar como certo e irrefutável. Sucede que quando calamos o outro lado deixamos de o ouvir e perdemos o debate que não existiu. Pior: perdemos a capacidade de argumentar. A capacidade de perceber o outro e de o convencer. Forçamo-lo a entrincheirar-se, a fincar os pés no chão e a querer combater-nos com a mesma violência que usamos contra ele.

A força de uma democracia está na capacidade de quebrar este círculo vicioso como, acredito, já está a suceder em várias cidades dos EUA. Se uma democracia for forte os que pretendem impor-se destruindo o debate perdem o argumento. Há quem os vença com música e palavras de conforto. Também há quem os combata dizendo simplesmente que não. Há quem se levante e se oponha ao que gritam as massas. Há quem pense pela sua cabeça e, como Bari Weiss, escreva com liberdade. São pessoas como Weiss quem salvam a democracia. São pessoas como Weiss, que se recusam a que lhes seja imposta uma narrativa, que nos devem inspirar. Porque geralmente são os que nos alertam para o pior que nos indicam o caminho de saída. Isto não quer dizer que a vitória da democracia liberal esteja garantida. Apenas que há ainda quem se disponha a lutar por ela. Na verdade, se a estátua de Churchill foi vandalizada ainda há quem a vá limpar.
Título e Texto:  André Abrantes Amaral, Observador, 10-6-2020, 0h03

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