A maior parte da população nos países ocidentais está sem nenhuma voz nos negócios públicos, exceto por gritos de raiva. Se isso não for revertido, a tendência é a revolta piorar
Rodrigo Constantino
A Europa e a América do Norte
estão experimentando a maior onda revolucionária de protesto político desde os
anos 1960 ou talvez 1930. Exceto na França e em alguns casos pontuais, a
revolução até hoje permaneceu não violenta. Mas é uma revolução, no entanto. E
coloca basicamente elite e povo em lados opostos, numa moderna “luta de
classes”. Eis a tese que defende Michael Lind em The New Class War:
Saving Democracy from the Managerial Elite. Os argumentos apresentados por
Lind nos ajudam a entender certas nuances da invasão do Capitólio na última
quarta-feira, dia 6.
O poder social, segundo o
autor, existe em três esferas: governo, economia e cultura. Cada uma dessas
três esferas de poder social é o local do conflito de classes, às vezes intenso
e às vezes contido por acomodações entre as classes.
Entre a década de 1960 e o
presente, à medida que o medo menor de conflito das grandes potências diminuía
gradualmente os incentivos das elites ocidentais para fazer concessões às classes
trabalhadoras ocidentais, o sistema do pós-guerra de “pluralismo democrático”
foi desmontado em uma revolução de cima para baixo que promoveu os interesses
materiais e os valores intangíveis da minoria de gerentes e profissionais com
formação universitária, que sucederam aos antiquados capitalistas burgueses
como a elite dominante.
O que substituiu o pluralismo
democrático, em que as elites cediam mais poder aos trabalhadores organizados,
pode ser descrito como “neoliberalismo tecnocrático”. Para Lind, a revolução
neoliberal tecnocrática, realizada em uma nação ocidental após a outra por
membros da elite gerencial cada vez mais agressiva e poderosa, provocou uma
reação populista pela classe trabalhadora nativa na defensiva e sem poder.
Apesar de todas as suas diferenças, esses demagogos populistas lançaram contra-ataques semelhantes ao establishment “neoliberal” dominante em todas as três esferas de poder social. Os populistas da Europa e da América do Norte terão sucesso em derrubar e substituir o neoliberalismo tecnocrático? O autor acredita que não. Enquanto populistas podem obter vitórias isoladas ocasionais para seus eleitores, a história sugere que os movimentos populistas tendem a falhar ao enfrentar classes dominantes bem entrincheiradas cujos membros desfrutam de quase monopólios de expertise, riqueza e influência cultural.
Alcançar uma “paz de classe”
genuína nas democracias ocidentais exigirá unir e capacitar os trabalhadores
nativos e imigrantes, enquanto se restaura o poder de tomada de decisão genuíno
para a maioria não educada em universidades em todas as três esferas de poder
social — economia, política e cultura. O populismo demagógico é um sintoma. O
neoliberalismo tecnocrático seria a doença. O pluralismo democrático é a cura,
segundo o autor.
O neoliberalismo tecnocrático
— a ideologia hegemônica da elite transatlântica — finge que o status de
classe herdado virtualmente desapareceu em sociedades que são puramente
“meritocráticas”, com exceção das barreiras para a ascensão individual que ainda
existem por causa do racismo e da misoginia. Junto com os neoliberais e
libertários, os conservadores do establishment afirmam que a
elite econômica não é uma classe semi-hereditária, mas sim um agregado
caleidoscópico em constante mudança de indivíduos talentosos e trabalhadores.
Os gerentes mais importantes
são burocratas públicos e privados que dirigem grandes corporações nacionais e
globais, agências governamentais e organizações sem fins lucrativos. Eles
exercem uma influência desproporcional na política e na sociedade em virtude de
suas posições institucionais em grandes e poderosas burocracias. Tanto na
Europa quanto nos Estados Unidos, apenas cerca de três em cada dez cidadãos têm
diploma universitário, e um terço da população fornece quase todo o pessoal do
governo, negócios, mídia e organizações sem fins lucrativos.
Pode ser verdade que diplomas
universitários sejam tíquetes para sair da pobreza, mas a maioria é distribuída
no nascimento para crianças em um pequeno número de famílias com muito dinheiro.
O que Lind está pondo em xeque é a própria noção de meritocracia no mundo
moderno, em que o ingresso numa dessas universidades caríssimas já passa pelo
filtro do nascimento e costuma fazer toda a diferença no resultado. É delas,
afinal, que sai essa elite gerencial que vai comandar as instituições
dominantes.
O liberalismo baseado em
direitos, levado longe demais, torna-se liberalismo antidemocrático
A Revolução Industrial não
substituiu os sistemas de classes no Ocidente por sociedades meritocráticas sem
classes, afirma o autor. Substituiu o antigo sistema de classes, em sua maioria
hereditário, composto de proprietários e camponeses, por um novo sistema de
classes, principalmente hereditário, de gerentes e proletários, em que os
diplomas são os novos títulos de nobreza e brasões de armas.
As elites gerenciais
ocidentais de hoje muitas vezes fingem ser “cidadãos do mundo” e sinalizam sua
virtude ao desdenhar do Estado-nação democrático como algo paroquial ou
anacrônico. Mas a maioria está profundamente enraizada em seu país de origem. A
nova luta de classes não é uma guerra de classes global, portanto. Consiste em
lutas em nações ocidentais específicas entre as elites locais e as classes
trabalhadoras locais, lutas que acontecem em muitas nações ao mesmo tempo.
As fortunas de muitos
executivos de tecnologia de São Francisco dependem de legiões de trabalhadores
fabris mal pagos na China e em outros países, em fazendas que consomem muita
energia localizadas em áreas rurais remotas e em massivas infraestruturas de
transporte e comunicação que se estendem por vastas distâncias entre cidades e
nações e são mantidas por operários.
A maior parte da produção
física que resta nas nações ocidentais, como manufatura, agricultura e
mineração, incluindo extração de combustível fóssil, junto com a construção e a
manutenção da infraestrutura, ocorre longe dos centros da moda e subúrbios
prósperos, onde a maior parte da classe administrativa vive e trabalha. As
elites da classe alta em centros urbanos, portanto, podem defender
regulamentações ambientais rigorosas com baixo custo para elas.
Embora a França seja
responsável por apenas uma quantidade insignificante das emissões globais de
gases de efeito estufa, a fim de anunciar sua liderança moral no combate ao
aquecimento global, o governo do presidente Emmanuel Macron aumentou os
impostos sobre carros e caminhões movidos a diesel. Os custos desse exercício
de sinalização de virtude caíram desproporcionalmente sobre os cidadãos da
classe trabalhadora e do campo, dependentes de seus automóveis e caminhões. Daí
surgiu a revolta dos “coletes-amarelos”.
Michael Lind trabalhou na
Heritage Foundation, um think-tank conservador, mas sua visão
não é facilmente definível. Ele defende um “nacionalismo democrático”, é
crítico do libertarianismo, elogia o New Deal e poderia ser encaixado na
tradição do pensamento centralizador de Alexander Hamilton. No livro, fica
clara a defesa de um papel maior tanto para o Estado como para os sindicatos, o
que seria rechaçado por liberais clássicos e conservadores da linhagem
britânica. Mas o livro traz alertas importantes, mesmo para quem discorda de
sua visão, acerca do abismo criado entre as elites gerenciais e o povo
governado.
É basicamente o mesmo fenômeno
explicado de forma diferente por Charles Murray em Coming Apart, ou
por Christopher Lasch em The Revolt of the Elites, e que pode ser
bem ilustrado pelas vitórias de Trump e do Brexit. Há um crescente afastamento
entre a classe governante e a classe governada, que supostamente seria representada
por essa elite, mas não se sente assim, com boa dose de razão. Buscar
compreender essa crise de representatividade é crucial para salvar a
democracia, portanto.
O liberalismo baseado em
direitos, levado longe demais, torna-se liberalismo antidemocrático, sustenta
Lind. Muitas das instituições importantes para os cidadãos nas democracias são
sutilmente alteradas ou deslegitimadas em uma sociedade em que os interesses
comuns devem ser justificados exclusivamente em termos deste ou daquele direito
individual. Igrejas, clubes e famílias, para citar três exemplos, são
impossíveis de justificar com base em contratos entre indivíduos titulares de
direitos, como se fossem meras sociedades comerciais. Também é difícil para uma
filosofia baseada em direitos legitimar o Estado-nação como uma comunidade que
pode exigir lealdade e sacrifício de seus membros.
No geral, a mudança do centro
de gravidade das associações de membros locais baseadas em congregações da
igreja para fundações, organizações sem fins lucrativos financiadas por
fundações e universidades representa uma transferência da influência cívica e
cultural das pessoas comuns para a elite administrativa. O sucesso no setor sem
fins lucrativos frequentemente depende não da mobilização de cidadãos comuns,
mas da obtenção de verbas dos funcionários de um pequeno número de fundações
dotadas de bilionários em algumas grandes cidades, muitas delas com nomes de
antigos ou novos magnatas dos negócios, como Ford, Rockefeller, Gates, Soros e
Bloomberg.
As principais instituições nas
quais a classe trabalhadora encontrou uma voz — partidos de massa, sindicatos e
instituições religiosas e cívicas de base — foram enfraquecidas ou destruídas,
deixando a maior parte da população fora da elite dos países ocidentais sem
nenhuma voz nos negócios públicos, exceto por gritos de raiva. Se isso não for
revertido, a tendência é a revolta piorar. Apontar para o populismo como causa,
e não sintoma do problema, é errar o diagnóstico e, portanto, a receita. Ou o
povo tem mais participação efetiva no poder, em suas três esferas, ou as elites
tecnocráticas serão desafiadas com cada vez mais desprezo e ressentimento,
quiçá violência.
Título e Texto: Rodrigo
Constantino, revista Oeste, nº 42, 8-1-2021
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