sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Como uma revista britânica deturpou uma conversa com Jordan Peterson

Jordan Peterson está de volta ao debate público. E os chacais sabem disso

Maria Clara Vieira

Após um longo ano internado em clínicas de reabilitação de Toronto a Belgrado para tratar os terríveis efeitos colaterais do vício em antidepressivos, o psicólogo canadense Jordan Peterson, já aclamado como o intelectual mais influente do mundo, está de volta à arena pública - e já começou a atrair os leões.

Às vésperas do lançamento de seu terceiro livro, uma continuação do sucesso 12 Regras Para a Vida: Um Antídoto para o Caos, Peterson já enfrentou a resistência de funcionários da editora Penguin Random House - que, segundo relatos, imploraram, aos prantos, para que a casa se recusasse a publicar um autor “misógino” e “transfóbico”, e, na última semana, foi o epicentro de uma nova polêmica midiática.

Junto à filha Mikhaila, de 28 anos, que o acompanhou ao longo do tratamento na Rússia e na Sérvia, o psicólogo concedeu sua primeira entrevista à imprensa desde o retorno à ativa para a revista britânica The Sunday Times. Poucas horas após a publicação do artigo, os Peterson, pela primeira vez, divulgaram a íntegra do material.

Em resposta à editora que fez o convite para a entrevista, o psicólogo escreveu: “Não acho que seja mera sensibilidade da minha parte acreditar que não teria sido pior se tivesse falado sobre a minha vida para um inimigo declarado. (...) Estou francamente chocado com o grau de pura crueldade e rancor manifestado por sua jornalista, (...) com o grau de deturpação (se foi isso que foi) necessário para me induzir a falar como falei com ela, sem nenhuma intenção de minha parte além de responder às perguntas que ela me fez”.

Nenhum manual de redação obriga um jornalista a concordar ou sequer ser simpático com seus entrevistados - muito menos o impede de fazer perguntas polêmicas e difíceis. Colocar a fonte “contra a parede”, em muitos casos, é parte do jogo - a contrapartida é deixá-la se explicar e entregar ao leitor uma resposta coerente, ainda que editada para fins de concisão. Há que se considerar ainda que ao veículo é lícito optar por transformar a entrevista em um perfil, incluindo, no texto, apurações e impressões próprias do autor, o que parece ter sido a opção da Sunday Times.

Não deixa de ser notável, contudo, o fato de que Jordan Peterson tenha sido, mais uma vez, alvo de uma cobertura perniciosa, que sequer se esforça para compreender o fenômeno que o levou ao estrelato - e o que se pode esperar da nova fase. Durante mais de uma hora e meia, a jornalista Decca Aitkenhead ouviu o psicólogo falar detalhadamente sobre a pressão de estar sobre intensos holofotes durante três anos e a responsabilidade de apoiar a esposa, Tammy, diagnosticada com um câncer raro e grave, em meio à maratona de eventos e seu próprio adoecimento (Peterson já relatou em público, mais de uma vez, que sua família tem tendência à depressão). Ainda assim, publicou, erroneamente, que o psicólogo fora diagnosticado com esquizofrenia - informação que foi reproduzida à velocidade usual das redes por outros veículos de comunicação.

Sequestrado pela filha

Boa parte do artigo, contudo, é voltada para Mikhaila Peterson, a filha mais velha do psicólogo que, acompanhada pelo marido e pela filha de três anos, esteve ao lado do pai durante a internação. Além da administração da agenda do pai durante o retorno, coube à jovem narrar à jornalista, de antemão, toda a saga dos Peterson em busca de tratamento. Decca questiona, naturalmente, a opção por buscar uma terapia alternativa na Rússia, na contramão do que recomendavam os médicos de Toronto. Sem negar o teor controverso da decisão, Mikhaila explica - e Peterson confirma - que a família estava de acordo com a medida.

A conversa com Mikhaila resulta na seguinte descrição: “Se fosse um filme, seu diretor seria, sem dúvida, Mikhaila Peterson, de 28 anos, CEO da empresa de seu pai. Ela e o marido russo parecem ter assumido o controle total de seus negócios, portanto, antes que eu possa falar com ele, devo primeiro falar com ela. Irreconhecível pela morena de aparência comum nas fotos de apenas alguns anos atrás, Mikhaila hoje é uma Barbie metida e carrancuda, e fala com a convicção zelosa e pontiaguda de uma porta-voz do presidente Trump”.

Além de tratar com ceticismo a doença autoimune de Mikhaila - exaustivamente descrita por Peterson em seus livros e palestras, e devidamente relatada nos hospitais canadenses nos quais ela foi internada quando criança -, a repórter insinua que Peterson foi praticamente sequestrado pela filha. E arremata: “depois de 80 minutos no Zoom, a única coisa de que tenho certeza é que, se eu estivesse tão perto da morte como ela me garante que seu pai estava repetidamente, esta não é a pessoa que confiaria para salvar minha vida”.

“Masculinidade tóxica”

Quando Jordan Peterson, finalmente, volta ao centro da matéria, não escapa de acusações. “Quanto mais ele fala, porém, mais me pergunto se a masculinidade tóxica também pode ter sido a culpada [pelos problemas de saúde]. Sua história familiar de depressão pode nos dizer algo sobre o preço a ser pago por sua filosofia falsa; quando a vida se tornou terrivelmente estressante, a mentalidade de Peterson de ter postura, virar homem e aguentar o tranco não funcionou”.

Curioso é que, ainda nos primeiros minutos da entrevista, Peterson rejeita o estereótipo de “invencível” que a jornalista lhe imputa, assume que sempre sentiu medo e, ao longo da conversa, chora copiosamente ao falar de seu público. É de se imaginar de onde, afinal, a repórter tirou a comparação com Donald Trump, “outro homem infeliz que se isolou de suas emoções”.

Ao final, a reportagem ironiza o fato de Peterson demonstrar orgulho por ter conseguido finalizar seu terceiro livro - Beyond Order: 12 More Rules for Life (Além da Ordem: Mais 12 Regras Para a Vida, em tradução livre) - em meio ao colapso emocional, tendo gravado a versão em áudio durante episódios de acatisia, o grave efeito colateral do vício em medicamentos para ansiedade que o levou à internação (o psicólogo narra que as dores eram tão intensas que o impediam de ficar parado).

Nenhuma pergunta sobre como, afinal, a descida aos infernos impactou sua obsessão pelo sentido da vida. O único comentário referente às lições que o famoso psicólogo tirou do episódio foi suprimido do texto final; uns poucos segundos nos quais Peterson, emocionado, confessa: “Tenho muito mais apreço pela banalidade do normal. Você não tem ideia do privilégio que é poder estar sentado”.

Título e Texto: Maria Clara Vieira, Gazeta do Povo, 11-2-2021, 12h48

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