Péricles Capanema
Plateau de fromages.
Este artigo vai ser um “plateau de fromages”, prato de variados queijos, espero
que aproveite a alguns dos eventuais leitores. Foco em particular tipo humano
comum entre nós (explico a seguir a razão), o simplificador. Tantas vezes
simplórios, os simplificadores fogem dos contrafortes do pensamento, das
nuanças nascidas da observação de quem não tem medo do esforço de enxergar com
cuidado. Após reflexões superficiais, saltam de suas cacholas soluções toscas e
definitivas, não raro enfáticas. Tortas, atalhos para desastres. Enfim, o
simplista em suas reflexões amputa parte substancial da realidade, julga com
base em quadro sem elementos fundamentais. Vício entranhado, em parte enraizado
na ignorância pretensiosa, difícil de extirpar na maioria das vezes. No longo
prazo, é um demolidor das causas que até pode julgar defender. Demolições em geral
despercebidas. Se quisermos, um autodemolidor, mesmo que inconsciente e até de
boa-fé.
Têm audiência tais pregoeiros
de atalhos para fracassos inevitáveis? Têm; e muita. “Stultorum numerus
infinitus est” (Ecl 1, 15), infinito é o número de imbecis, constatou
Salomão milênios atrás; continua palpitante a desabusada sentença do sábio rei
judeu. Também por isso é necessário ter o olho posto nos obstinados amputadores
da realidade inteira.
Além da audiência que
conseguem, podem ser atraentes? Sem dúvida. Com efeito, para as emaranhadas
questões debatidas na esfera pública, os simplificadores indicam soluções
fáceis para problemas difíceis; de outro modo, analgésicos para dores
lancinantes, até mesmo poções mágicas — na vida privada acontece o mesmo.
Sempre é simpático, para quem se sente no pântano, ver gente mostrando trilhos
de saída. O problema é que, via de regra, não são carreiros que irão dar na
terra firme.
Mais observação, mais pensamento, menos palpites. Por que entrei em tal vereda? Porque pretendia futurar sobre a intricada situação nacional. Mas trombei logo com pilhas de irritantes declarações simplificadoras — o que mais encontrei, aliás, de alto a baixo, em todos os quadrantes. E veio a certeza entristecida, em ambiente dominado por simplificadores, não vai aparecer solução que preste. O debate então pressupõe saneamento prévio, profundidades translúcidas nas concepções, gente menos pitaqueira, que saiba observar bem.
Meteoro brilhante. Jackson
de Figueiredo nasceu em Aracaju, formou-se em Direito na Bahia, teve vida
pública no Rio de Janeiro até a morte trágica e inesperada por afogamento na
Barra da Tijuca. Jornalista e escritor, publicou seu primeiro livro em 1908 aos
17 anos. Destacou-se como polemista, marcou a cena pública em especial como
líder católico de grupos de intelectuais. Estadeou com desassombro suas
convicções, embora tenha começado a vida pública como anticlerical raivoso —
converteu-se ao Catolicismo em 1918. A partir daí, ascensão segura no meio de
certames acirrados. Organizou o movimento de leigos católicos. Fundou o Centro
Dom Vital, núcleo de pessoas de valor, criou a revista “A Ordem”, que marcou a
vida da inteligência nacional. Jackson sentia-se bem na luta, combateu pela
pluma e palavra o liberalismo e o comunismo. “Troquei toda a veleidade
de construir por mim só ou com a ajuda deste ou daquele grande espírito uma
filosofia da ação. Preferi ser o humilde soldado que sou da Igreja Católica, e
me sinto tão orgulhoso disso como se fora um rei”. E assim lutou com denodo
para colocar os católicos e os temas católicos nos galarins, enfim retirar a
Igreja da situação melancólica sinalada por dom Sebastião Leme em sua carta
pastoral de 1918: “Somos uma maioria que não atua; somos uma maioria
asfixiada. O Brasil que aparece, o Brasil nação, esse não é o nosso. É da
minoria. A nós, católicos, apenas dão licença de vivermos”. Apaixonado,
controverso, homem de seu tempo, parte de sua ação seria vista hoje com justas
reservas, mas não é o que pretendo realçar. Meu assunto é outro,
simplificadores, ou simplistas, vou voltar a ele. Estou apenas aproveitando a
ocasião para lembrar em traços rápidos uma personalidade, cujos reflexos no
Brasil contemporâneo enriqueceriam o debate, tantas vezes amputado de aspectos
importantes, e assim, côngruo lembrá-lo aqui, entre outros efeitos, diminuiria
a importância deletéria dos simplificadores.
Morto Jackson, o Brasil
ficou mais pobre. Logo após o falecimento de Jackson de Figueiredo, a
4 de novembro de 1928, Carlos Drummond de Andrade, então poeta de pouca
nomeada, vivendo na pequena Belo Horizonte, na época com pouco mais de 100 mil
habitantes, homem de esquerda, “rigorosamente agnóstico” (palavras suas),
publicou uma “Ode a Jackson de Figueiredo” (texto integral estampado em “A
Ordem”, dezembro de 1929), que ecoou Brasil afora:
“Jackson, nem amigo, nem
inimigo […] espiando teus gestos, tuas palavras e obras, mas distante,
extraordinariamente distante daquilo que foi a tua vida, mais distante ainda
dos mundos que exploraste […] aqui estou, testemunha, depondo. Jackson, os que
te conheceram e te amaram, os que te conheceram e não te amaram, os que não
tiveram tempo de te amar, os que não cruzaram no teu destino, os que ignoram o
teu nome, os que jamais saberão que exististe, estão todos um pouco mais pobres
do que eram antes. Uns perderam o amigo. Outros, o inimigo, o grande e belo
inimigo que orgulha. Outros nada perderam, e é tão triste, tão doloroso não
perder nada. Como estes, eu me sinto pobre da pobreza de não ter sido dos teus,
Jackson, e eu sinto verdadeiramente por todos aqueles que jamais suspeitarão
disso. Voltou o tempo dos prodígios. Ainda há pescas maravilhosas, eu sei. E os
peixes que arrebataste a um mar mais crespo que o de Tiberíades, estão cantando
a glória do Senhor. Milhares de […] almas elevam um cântico tão puro que a
terra se mistura com o céu […] E nem se percebe o pescador que as ondas
arrebatam, que as ondas arrebatam violentamente, […] enquanto o corpo mergulha.
[… ] Muitas coisas nos ensinou a tua morte, que a tua boca não soubera
exprimir”.
O prodígio havia se calado.
Permaneceu o eco. Até hoje.
O maior paladino suscitado
pela Providência. Anos mais tarde, outubro de 1941, em artigo comemorativo
do cinquentenário de seu nascimento, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, no
“Legionário”, afirmou de Jackson de Figueiredo:
“Invulgar figura, o maior
paladino suscitado pela Providência nas fileiras do laicato católico, dele se
pode afirmar que não foi dos tíbios que causam asco ao Senhor. Alma forte e inteiriça,
atingiu rapidamente em suas obras as culminâncias do senso católico, ao menos
sob vários pontos de vista. Batalhador audaz, inteiriço e leal; abominava os
silêncios covardes, os disfarces indignos; impávido, pronto para atacar, para
discutir e para censurar”.
Na conclusão, a nota do
serviço único: “Jackson prestou ao Brasil um serviço incomparável”.
Embates duros no Brasil da
República Velha. Desembarco enfim na simplificação. Artur Bernardes
(1875-1955) governou o Brasil de 1922 a 1926 sob oposição do tenentismo, de
correntes liberais, de setores que hoje seriam apodados de progressistas. Duro,
seco, de algum modo representava a reação. Jackson apoiou-o desde o início, via
retrocessos preocupantes nas forças que procuravam abatê-lo, estuário de
posições revolucionárias por ele guerreadas. Dessa forma, em 1921 se aliou à
candidatura Bernardes, considerando-a garantia da ordem e favorecedora da
religião. Por ricochete, ficava claro, dava apoio aos grupos políticos que
dominavam a política brasileira desde vários lustros. Entre 1922 e 1924, já no
governo Bernardes, Jackson agiu contra o tenentismo, movimento perpassado por
diagnósticos simplificadores, arroubos autoritários e crença ingênua no poder
redentor do Estado. Nesse contexto devem ser analisadas as observações de
Jackson:
“Como católico, devo declarar que o que mais admiro em quem quer
que seja é a firmeza, a coragem das convicções. […] Criado entre militares, que
abundam em minha família, sempre mantive relações de amizade com muitos
oficiais. […] Confesso que, se comparo essa gente com as de outras classes com
que tenho convivido, acho que a porcentagem de homens de caráter, de vergonha,
é maior entre militares. […] O militar é, como o sacerdote, um homem a quem, no
início da juventude […] foram impostos hábitos de ordem, método, disciplina e
vivamente incutidas as mais nobilitantes virtudes de ordem prática, sobre o
valor moral da obediência, do sacrifício de si mesmo”.
Depois de mostrar um lado da
moeda, expõe o reverso:
“A vida do quartel e o
estudo de suas especialidades, isolando-o, até certo ponto, nesse agitado meio
social fazem com que o militar seja, quase sempre, um simplista”. Continua
dizendo, um homem mais de imaginação que de experiência. Vale para a profissão
das armas, vale para qualquer profissão. Sem cuidados próprios, a maioria das
profissões tende a formar profissionais simplificadores. Prossegue Jackson de
Figueiredo: “O nosso político, o nosso tão malsinado político tem, em
relação ao bom militar, esta indiscutível superioridade; está muito mais a par
de nossas necessidades sociais de cada momento, sabe que administrar não é
somente mandar e ser obedecido, tem muito mais complexidade intelectual”.
Lamenta a inexistência entre muitos homens de uniforme “dessa finura de
tato que se requer de um verdadeiro político”.
Planar como o açor.
Longo o texto, brado contra simplificações deletérias, curto o espaço meu, vou
parar. O que Jackson de Figueiredo lamentava, a análise parcial e geométrica da
realidade, amputada de facetas essenciais, persiste ovante, satisfeita, entulha
jornais, de modo especial as redes sociais. Sem o hábito de se elevar muito
alto, como o açor em caça, e de lá perceber os problemas em toda sua extensão,
o debate nacional necessariamente terá premissas pobres e deformadas. E
soluções pecas que farão o País deslizar despercebidamente para abismos. Aqui
está ponto prévio, indispensável a qualquer discussão proveitosa, cujo destaque
é mais uma das benemerências de Jackson de Figueiredo.
Título, Imagem e Texto: Péricles
Capanema, ABIM,
6-5-2021
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