Passou a haver tanta gente na esquerda, na verdade, que o próprio Lula começou a ficar incomodado. Deu para dizer que é 'de centro'
J. R. Guzzo
Houve um tempo, neste país, em que para apresentar-se como alguém “de esquerda” o sujeito precisava estar disposto a fazer uma porção de coisas relativamente difíceis. Tinha, para começo de conversa, de correr algum tipo de risco — passar a vida sem dinheiro no bolso, por exemplo, arrumar problema com a família, perder o emprego ou até mesmo, em momentos mais complicados, ir para a cadeia. Era preciso ser contra a propriedade privada, os confortos burgueses e os produtos norte-americanos em geral; nem filme de cinema podia. Só um jornal, em todo o mundo, sabia realmente das coisas — o Pravda da Rússia, infelizmente inútil para quem não entendesse russo. Casos severos de complexo de inferioridade ou de dor de consciência perturbavam a paz mental de quem não fosse operário — ou pelo menos “proletário” de um modo geral.
Era complicado, também, ser
uma pessoa compreensível para quem não fosse de esquerda — como explicar, por
exemplo, que numa “democracia popular”, o único tipo de democracia que presta,
não há eleições, só existe um partido e ninguém pode falar mal do governo?
Enfim: o cidadão tinha de ser comunista, ou coisa muito parecida, para ser de
esquerda. Em casos extremos, era pior ainda. Apareceram a “resistência ao golpe
militar” e a “luta armada”, e aí só se podia definir como realmente
progressista quem entrasse em alguma aglomeração terrorista, dessas que
assaltavam banco, sequestravam embaixador e matavam sentinela de quartel. Hoje,
por exemplo, ninguém sabe o que é “VPR”; vão achar, talvez, que é algum tipo
de QR Code, ou aplicativo de celular. Mas naquele tempo havia
gente que entrava num negócio desses e acabava com um tiro na cabeça, às vezes
dado pelos próprios companheiros, ou num pau de arara do Dops.
Mais recentemente, ou de uns
40 anos para cá, tudo se tornou muito mais sossegado. Apareceram, num momento
de tolerância do “regime militar”, o PT e o ex-presidente Lula, e aí tudo ficou
lindamente resolvido. Para ser de esquerda não era preciso fazer mais nenhuma
daquelas coisas que davam problema; era suficiente ser petista ou lulista. Não
precisava nem entrar no partido, ou pedalar dez minutos na bicicleta
ergométrica, nem muitíssimo menos abrir mão de algum conforto material —
bastava dizer que Lula era um grande nome e votar nele na hora da eleição, ou
pelo menos dizer que votava. Em suma: ser de esquerda ficou de graça no Brasil.
Mais que isso. Não apenas não há mais o menor perigo para quem entra no “campo
progressista” como, na maioria das vezes, foi se tornando muito mais
proveitoso, e certamente mais seguro, dizer para o máximo possível de gente:
“Eu sou uma pessoa de esquerda”.
No corrente momento, porém,
ficou tão fácil ser de esquerda, mas tão fácil, que rigorosamente qualquer um
pode proclamar no meio do Viaduto do Chá ou no horário nobre da televisão que
está plenamente integrado nas lutas populares etc. etc. Não importa o que o
indivíduo faça, ou tenha feito, na realidade da sua vida política, social ou
profissional. A única exigência para receber a certidão de “pessoa de esquerda”
é autodeclarar-se como tal, ou nem isso; para simplificar as coisas, basta
dizer que você é contra “o Bolsonaro”, ou escolher uma opção qualquer do menu
apresentado abaixo. Pronto — fica tudo resolvido. Passou a haver tanta gente na
esquerda, na verdade, que o próprio Lula começou a ficar incomodado;
ultimamente, aliás, deu para dizer que é “de centro”.
O esquerdista assina qualquer manifesto de artista de novela da Globo
Tanto faz. O fato é que existe uma multidão de lulistas, petistas, socialistas, psolistas, boulistas etc. etc. etc. prontos para sacar do bolso a carteirinha de esquerdista. O senador Renan Calheiros, por exemplo: acredite se quiser, mas ele é tratado pela imprensa, pelo mundo político e pelas classes intelectuais como um dos mais notáveis gigantes da atual “resistência” ao fascismo e, por via de consequência, como um homem de esquerda em estado puro. O governador João Doria ou o apresentador de televisão Luciano Huck também são de esquerda, neste Brasil de hoje. Nunca planejaram nada parecido, mas ficaram do “lado certo da contradição” — ou seja, ficaram contra Bolsonaro —, e isso é mais do que suficiente, nas presentes condições de temperatura e pressão, para transformar até Donald Trump num campeão das lutas democráticas e populares. A coisa ficou de um jeito que tem até banqueiro de investimento dizendo que é “de esquerda”. (No Rio de Janeiro há pelo menos um; pode haver outros, escondidos.)
Tudo isso é uma piada gigante,
mas há nesse angu gente que se leva terrivelmente a sério — ou pelo menos é
levada a sério pela mídia e pelo resto da elite nacional. Quantos? Não se sabe;
a maioria, provavelmente, é formada pelos vigaristas de sempre, prontos para se
aproveitar daquilo que lhes parece uma oportunidade de proveito pessoal. Em
todo caso, sejam batedores de carteira ou inocentes bem-intencionados, o fato é
que reagem exatamente da mesma maneira, de forma automática, quando colocados
diante dos mesmos estímulos. Todos os novos esquerdistas, em primeiríssimo
lugar, são contra o presidente da República, é claro — e os velhos também. Ser
de esquerda no Brasil dos nossos dias, igualmente, é ser defensor da quarentena
geral e cada vez mais repressiva, por tempo indeterminado, e de preferência
para sempre. (É necessário, nessa mesma linha, ser contra a cloroquina.) O
esquerdista moderno também é a favor da corrupção, sobretudo a praticada pelas
“autoridades locais”. Nem precisa, na verdade, fazer o esforço de dizer que é a
favor da corrupção; basta dizer que é contra os “excessos” no combate à
ladroagem. Um esquerdista contemporâneo admira as empreiteiras de obras
públicas, os procuradores da Justiça do Trabalho e os cultivadores de produtos
orgânicos. Assina embaixo, sem mudar nada, qualquer manifesto de artista de
novela da Globo, ou dos movimentos das “comunidades” do Rio de Janeiro contra
“a violência policial”. É um admirador da OAB.
Lembrar que Lula é um réu
condenado em terceira e última instância pelos crimes de corrupção e de lavagem
de dinheiro, e isso por nove magistrados diferentes, é positivamente proibido
para qualquer pessoa de esquerda no Brasil de 2021; na verdade, aí já é
suspeita de fascismo, com viés para genocídio. É óbvio, até para crianças com
10 anos de idade, que um esquerdista de hoje é a favor do Supremo e dos seus
onze ministros; mesmo que decidam que o movimento de rotação da Terra é
inconstitucional, ou que o ângulo reto ferve a 90 graus, todos eles são heróis
da guerra em defesa das instituições democráticas e do Estado de direito no
Brasil. Entre eles todos, o colosso preferido pela esquerda é o ministro Gilmar
Mendes, que não deixa nenhum acusado na cadeia, salvo se ele foi preso pelo
colega Alexandre de Moraes por ser de direita e pela prática de “atos
antidemocráticos”. O segundo, entre os mais admirados, é o ministro Edson
Fachin, que anulou de uma vez só as quatro ações penais contra Lula.
Ser de esquerda, em suma, é
isso tudo e mais do mesmo; é só ciscar nesse terreiro para os novos apóstolos
da classe trabalhadora irem aparecendo. De Renan a Boulos, de Doria a Lula, da
Febraban ao MST, há para todos os gostos e para todas as preferências.
Título e Texto: J. R. Guzzo, revista Oeste, nº 60, 14-5-2021
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