Foi dado ao ministro o direito, que ninguém teve até hoje na história do Brasil, de usar as suas funções públicas para fazer absolutamente tudo o que lhe der na cabeça
J. R. Guzzo
É proibido pela lei brasileira, de maneira muito clara, cobrar dívidas usando recursos depositados na conta-salário — a conta bancária aberta pelo empregador e destinada exclusivamente a receber os depósitos da remuneração do empregado. Ninguém pode mexer na conta-salário; é uma das proibições mais indiscutíveis da legislação brasileira. Não pode ser acionada pelo banco, por exemplo, para saldar o cheque especial que o cliente está devendo, nem para descontar parcelas do cartão de crédito — nem para pagar um empréstimo contraído junto ao próprio banco, ou prestações, ou boletos, ou débitos automáticos. Não pode ser usada para pagar multas, ou impostos ou o que quer que seja. Só é possível entrar na conta-salário para cobrar pensão alimentícia — e, assim mesmo, só por decisão judicial. Ou, então, parcialmente — em até 30% —, quando a conta acionada tiver valores acima de 50 salários-mínimos.
Nunca passou pela cabeça de ninguém, nem durante a vigência do AI-5, bloquear o valor integral da conta-salário de um cidadão brasileiro. Nunca — até aparecerem o ministro Alexandre de Moraes e esse Supremo Tribunal Federal que está aí. Ele acaba de fazer exatamente isso. Bloqueou as contas bancárias do deputado Daniel Silveira, inclusive a conta na qual a Câmara dos Deputados deposita os seus vencimentos, para garantir o pagamento de uma multa de R$ 15.000 por dia que ele mesmo impôs — caso o deputado, em regime de prisão domiciliar, não usasse uma tornozeleira eletrônica que não tem rigorosamente nada a ver com a segurança pública ou com qualquer necessidade processual, e que hoje se transformou num fetiche pessoal para o ministro.
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Foto: André Dusek/Estadão Conteúdo/AE |
O que pode haver de mais ilegal do que fazer um cidadão cumprir pena
antes de receber qualquer condenação?
É absolutamente ilegal. O artigo 833 do Código de Processo Civil diz com a mais exuberante clareza que não é possível mexer na conta-salário de ninguém, salvo nos casos mencionados acima, pois o salário é um bem que não pode ser penhorado — e o artigo 833 do CPC simplesmente não foi revogado. Ou seja: um membro da Suprema Corte de Justiça do Brasil cospe na lei na frente de todo mundo, rasgando uma regra que qualquer advogado de porta de cadeia conhece, e ninguém, no Senado Federal, na Câmara dos Deputados e no restante do sistema judiciário, abre a boca para dizer uma palavra mínima de protesto.
A punição a Daniel Silveira já
era ilegal por si mesma — uma multa exorbitante que equivale a US$ 100.000 por
mês, e não tem proporção com coisa nenhuma ou qualquer cálculo coerente. Na
verdade, todo o inquérito que Moraes faz há três anos para “apurar atos
antidemocráticos” e “fake news” é grosseiramente ilegal. O que pode
haver de mais ilegal, para encurtar a conversa, do que fazer um cidadão cumprir
pena — prisão domiciliar agora, e nove meses de prisão fechada no ano passado —
antes de receber qualquer condenação, ou sem passar por qualquer julgamento
legal? Agora chega-se ao ponto do deboche, ou do escândalo público serial:
violar a proteção da conta-salário já parece revelar algum tipo de compulsão
primitiva pela ilegalidade.
Com a perseguição pessoal ao
deputado Silveira, e a eliminação quase completa dos seus direitos civis, fica
estabelecido pelo STF, e pela classe política no Brasil, que a lei vale para
todos os brasileiros, menos um — o ministro Moraes. Foi dado a ele o direito,
que ninguém teve até hoje na história do Brasil, de usar as suas funções
públicas para fazer absolutamente tudo o que lhe der na cabeça.
Moraes jogou os seus direitos, o regimento da Câmara e a Constituição
na lata de lixo, e continua jogando
Por conta dessa alucinação de
republiqueta bananeira, Moraes já trancou Silveira na cadeia durante nove meses
inteiros — ou seja, prendeu e manteve na prisão por um período de tempo
incompreensível um deputado federal em pleno exercício do seu mandato, sem que
o preso tenha tido recurso a nada ou a ninguém. O ministro, na ocasião,
declarou nulas as imunidades parlamentares do deputado, que, pela lei, jamais
poderia ter sido punido por expressar o seu pensamento — no caso, uma bateria
de insultos e de ameaças de boca aos ministros do STF. Pior: nenhum deputado
pode ser preso a não ser por crime inafiançável, e se a prisão não for feita em
flagrante delito. Não houve nada disso — nem o crime inafiançável, nem o
flagrante delito. Silveira, obviamente, teria de responder por sua agressão
verbal da forma que a lei estabelece, e com a participação da Câmara. Nada
feito. Moraes jogou os seus direitos, o regimento da Câmara e a Constituição na
lata de lixo, e continua jogando.
Nem durante os 21 anos de
regime militar, incluindo os 11 em que vigorou o AI-5 — pelo qual nenhuma ação
do governo estava sujeita a decisões da Justiça —, o Brasil assistiu a alguma
coisa parecida. Os generais podiam fazer tudo, mas nunca chegaram a fazer o que
Moraes está fazendo. Os parceiros do ministro no STF podem argumentar, talvez,
que o colega não mandou pendurar o deputado num pau de arara para uma ou mais
sessões de choques elétricos. E se tivesse mandado — por acaso alguém, no
plenário, nas mesas do Congresso e nos meios de comunicação, teria tentado
impedir? Alguém teria aberto a boca? Ficariam todos a favor, como estão hoje.
Os presidentes da Câmara e do
Senado, especialmente, têm dado um espetáculo de covardia em público que não se
viu nem nos tempos em que deputados e senadores viviam no terror de ter os seus
mandatos cassados por algum general de mau humor. Permitiram, sem a menor
vergonha, a violação das imunidades constitucionais de seu colega.
Recusaram-se, até hoje, a dizer uma única sílaba de reprovação às ações ilegais
do ministro Moraes. Vivem se pondo de quatro diante do STF, do STJ e do resto
da junta judiciária que governa o Brasil; em vez de defenderem os direitos do
Poder Legislativo, como é a sua obrigação legal, preocupam-se em bajular os
juízes que os perseguem, na esperança de não ser incomodados pelo Tribunal de
Inquisição instalado de forma permanente em Brasília.
Sua atitude é idêntica à da
mídia. Jornalistas e donos de veículos tomaram abertamente o partido de Moraes
e do STF na sua guerra à liberdade no Brasil. O ministro, por sua vez, exibe-se
o tempo todo para a imprensa; sabe que vai ser aplaudido em qualquer delírio no
qual se meter. Seu fã-clube apoia agressivamente todos os atos contra a lei praticados
por ele, e não dá a palavra a quem possa ter uma opinião diferente.
O ministro Moraes, hoje, é o
grande herói da maioria dos jornalistas brasileiros e de seus patrões; ambos
têm certeza de que ele é o maior defensor da democracia no Brasil, e que o deputado
Silveira é uma ameaça tão monumental à sociedade que não pode ser protegido
pela lei. No seu caso, decidiu a mídia, a Constituição não se aplica. Uma
pessoa que segundo ela “não é democrática”, apesar de eleita como todos os seus
colegas, não pode ter direitos. No mesmo barco estão as classes intelectuais,
as esquerdas de todos os tons e a grande pasta do “politicamente correto”
nacional. Nada mais parecido com Alexandre de Moraes, no Brasil de hoje, do que
um militante do exército “identitário”, “igualitário”, “sustentável” etc. etc.
etc. que circula por aí.
O deputado Silveira está sofrendo “perseguição política judicial e
ideológica” por parte de Moraes
“Trata-se de uma escalada
autoritária sem precedentes na história”, disse o senador Eduardo Girão, do
Ceará. “Não estou referendando o comportamento de Daniel Silveira, que deve
responder por seus excessos pelas vias naturais do processo legal. Mas nada
justifica essa perseguição implacável do ministro Alexandre de Moraes.” Girão
apresentou um requerimento para que Moraes seja “convidado” a comparecer ao
Senado, onde teria a oportunidade de fazer um discurso para falar bem de si
próprio e do processo que está comandando; é o primeiro sinal de que alguém, na
vida pública brasileira, considera que haja alguma coisa irregular com os três
anos de agressões à lei brasileira por parte do ministro. (O deputado Silveira
é apenas a vítima mais em evidência neste momento; há muitos outros, do
ex-presidente do PTB, em prisão domiciliar, ao jornalista que teve de se exilar
nos Estados Unidos e é objeto de um pedido de extradição via Interpol.)
Juristas de renome também
começam a se manifestar em relação à ilegalidade do inquérito perpétuo de
Moraes e sua atitude de desrespeito contínuo às leis e à Constituição. “Para
abrir uma investigação, é preciso haver, antes, indícios de crime”, diz Dircêo
Torrecillas Ramos. “No caso, não há esses indícios.”
O professor Ives Gandra
Martins chama a atenção para a ofensiva contra direitos fundamentais da
população brasileira. “A liberdade de expressão não poderia ser atingida”, diz
ele. “Tampouco teria de ser matéria examinada pelo Supremo, e sim por um juiz
de primeira instância.”
O jurista Adilson Dallari acha
que a conduta de Moraes é criminosa, muito simplesmente. “Os abusos praticados
pelo ministro estão tipificados como crimes de responsabilidade no artigo 39,
itens 3 e 5, da Lei 1.079, por exercer atividade político-partidária e proceder
de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro das suas funções.”
O desembargador Ivan Sartori,
do Tribunal de Justiça de São Paulo, chama a atenção sobre o que considera uma
“ditadura da toga”. Diz ele: “Estamos a ponto de chegar a essa situação. A
esquerda usa o STF para prejudicar o governo; já houve 200 intromissões do
tribunal em atos do Poder Executivo”.
Somos um país em que os corruptos se transformam em vítimas — e em
candidatos à Presidência da República
Outra manifestação de
inconformismo veio de um grupo de mais de 1.000 advogados filiados ao Movimento
Advogados de Direita Brasil. O deputado Silveira, afirmam eles, está sofrendo
“perseguição política judicial e ideológica” por parte de Moraes. “O ministro
relator do inquérito inconstitucional e ilegal contra o deputado Daniel
Silveira revela inquestionável insubmissão à Constituição Federal do Brasil, às
leis processuais penais aplicáveis, à imunidade constitucional de deputado
federal, às prerrogativas do advogado de defesa, ao princípio acusatório, ao
devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. O deputado Silveira
tornou-se não apenas um perseguido político, mas um prisioneiro político do
ministro Alexandre de Moraes.” O documento afirma que a prisão ilegal do
deputado fere não apenas os seus eleitores, mas toda a democracia brasileira.
“Temos um parlamentar cumprindo pena antecipada, sem ter sido submetido ao
devido processo legal. Como podemos conceber a ideia de um país democrático de
direito, onde um cidadão brasileiro cumpre pena sem ter um julgamento? Onde o
seu acusador se transveste de vítima e juiz?” Não há nada que possa ser
contestado, objetivamente, no manifesto desses advogados. São fatos — e Moraes,
aí, é o réu.
É possível que um indivíduo,
pela circunstância de exercer uma função pública no alto do Poder Judiciário,
seja autorizado a violar de maneira sistemática a Constituição, para atender a
projetos, a rancores e a caprichos pessoais? No Brasil de hoje é. O presidente
da República não pode desrespeitar a Constituição; nenhum dos seus ministros
pode. Os senadores e deputados não podem. Os governadores não podem. Ninguém
pode. Alexandre de Moraes e o STF podem, e podem cada vez mais — quanto menos
resistência encontram, e quanto mais aplausos recebem da mídia, das elites e da
esquerda, maior fica o seu apetite por mandar no Brasil. É muito natural. Somos
um país em que, por força do STF e dos tribunais superiores de Brasília, os
corruptos se transformam em vítimas — e em candidatos à Presidência da
República. Seus acusadores e juízes, por cumprirem o seu dever, são condenados
pelos mesmos tribunais. Numa sociedade em que acontecem esses milagres,
Alexandre de Moraes não poderia estar mais à vontade.
Título e Texto: J. R. Guzzo, revista
Oeste, nº 107, 8-4-2022
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