sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Temporada de caça às bruxas

Estamos vendo a divisão entre os que estão dispostos a usar o poder do Estado para silenciar seus oponentes e os que estão preocupados com a liberdade e o império das leis

Ana Paula Henkel

Foram quatro ininterruptos anos de uma perseguição histórica. Desde a campanha presidencial, Donald Trump vem sendo caçado pelos democratas como nunca se viu com qualquer outro presidente. E falo isso com muita tranquilidade, o bufão laranja não era meu candidato favorito nas primárias republicanas em 2016. Em novembro daquele ano, confesso que não estava animada com o desfecho da eleição presidencial. A corrida para a Casa Branca, entre Donald Trump e Hillary Clinton, ficou marcada como uma corrida de dois nomes ruins para os norte-americanos.

Mas Donald Trump me surpreendeu com a sua administração. E acredito ter surpreendido muita gente que comprou a embalagem, e não o conteúdo. É verdade que o conteúdo só pôde ser conhecido, de fato, depois de vê-lo por algum tempo no Salão Oval. Mas, rapaz… que conteúdo. Não vou me estender aqui desmiuçando as políticas dos quatro anos de Trump na Casa Branca, há vários artigos honestos na internet sobre esse período, mas hoje atesto sem vergonha (e também com vergonha por não ter apostado que ele seria um bom “CEO da América”!) que os Estados Unidos estariam em lençóis muito piores se o malvadão do século não tivesse entrado na rota dos norte-americanos como Commander in Chief.

Pois bem, mesmo depois de uma conturbada — e ainda cheia de mistérios — eleição presidencial em 2020, os democratas voltaram ao poder. Além da Presidência, eles retomaram também a Câmara e o Senado. Bufão fora da Casa Branca, vamos tocar nossa agenda radical e jogar Trump no esquecimento! Certo? Errado. Donald Trump continua fazendo estragos no caminho político dos democratas até hoje.

A volta do malcriado do Twitter

O movimento MAGA (Make America Great Again), iniciado por Trump em 2016, parece estar mais forte do que nunca, e isso pode ser medido pelos resultados de eleições locais nos Estados. Desde 2021, os republicanos vêm tomando territórios importantes do tabuleiro político norte-americano, como o governo do Estado da Virgínia e quase todos os cargos eletivos importantes, região que votava com os democratas havia muitos anos. No caminho das eleições de midterms agora em novembro, Trump continua incomodando democratas e até republicanos que torcem o nariz para ele. Depois da rodada do último fim de semana para as cadeiras da Câmara e do Senado, dos 187 candidatos apoiados por Trump dentro das primárias do partido republicano, 173 saíram vitoriosos e 14 foram derrotados. Um impressionante aproveitamento de 93% em suas indicações.

Mas há muito mais nesse caminho, além das eleições de midterms, que apavora os democratas. Diante de tamanho engajamento — mesmo com toda a demonização de sua figura política durante os quatro anos na Casa Branca —, Trump ameaça com uma cartada que pode ser devastadora para o partido do senil Joe Biden, hoje sem nenhum legado ou herdeiro político com porte presidencial: sua volta a Washington e ao Salão Oval em 2024. Trump sofreu algumas tentativas de impeachment enquanto presidente, e pelas razões mais ridículas que os norte-americanos poderiam ver. Um processo até passou na Câmara, mas foi derrubado no Senado. Mais um plano de impeachment, um seguro arquitetado por Nancy Pelosi usando o 6 de janeiro, foi colocado em prática para evitar a volta do malcriado do Twitter e se iniciou logo após sua saída da Presidência, mas também não obteve sucesso. Nesta semana, mais uma tentativa de impedir que o 45º presidente dos Estados Unidos se torne o 47º presidente de sua história entrou em curso.

Na segunda-feira 8 de agosto, a casa do ex-presidente em Mar-a-Lago, Flórida, sofreu uma incursão sem precedentes do FBI. A operação, que continha um enorme número de agentes, foi desencadeada por uma investigação em andamento do Departamento de Justiça sobre caixas de materiais que Trump levou consigo para a Flórida quando deixou a Casa Branca. Os agentes entraram na residência de Trump enquanto ele não estava em casa, para confiscar documentos de propriedade pessoal, cofre e registros. Seus advogados alegam que também não puderam acompanhar a operação. Tudo isso por causa de uma disputa de arquivo de papéis presidenciais comum a muitos ex-presidentes.

Os agentes ocuparam e vasculharam a casa inteira, incluindo o guarda-roupa da ex-primeira-dama Melania Trump. A incursão do FBI à casa do ex-presidente Donald Trump — algo nunca visto na história dos Estados Unidos — pode energizar ainda mais os eleitores republicanos que não esqueceram que Hillary Clinton excluiu 33 mil e-mails de quando era secretária de Estado e ganhou apenas um tapinha na mão. Em 2016, o então diretor do FBI, James Comey, anunciou que a candidata Hillary Clinton era culpada de destruir os e-mails — um provável crime relacionado ao seu mandato como secretária de Estado. No entanto, ele praticamente prometeu que ela não seria processada devido ao seu status de candidata presidencial.

Um número crescente de republicanos e independentes (e brasileiros) percebe que, se quiserem realizar alguma coisa na próxima vez que estiverem na Casa Branca (e no Planalto), terão de reformar o serviço público e a política

O evento na Flórida é apenas mais uma razão pela qual os republicanos devem lutar mais para reformar uma burocracia politizada e poderosa. Por três anos, a falsa teoria da conspiração do conluio com a Rússia ajudou a atrapalhar a Presidência de Trump, mas o problema não eram apenas as mentiras de seus inimigos democratas e seus líderes de torcida da velha imprensa. A disposição dos agentes do FBI e funcionários do Departamento de Justiça em perseguir essa trama partidária demonstrou que a ideia de que essas agências são compostas de funcionários públicos apolíticos é um mito. O “deep state” não é um mito da direita.

Durante décadas, o serviço federal tornou-se cada vez mais um bastião para os democratas progressistas (leia-se regressistas). Absolutamente todos os estudos mostram que seus membros estão quase uniformemente à esquerda. Para dar apenas um exemplo, em 2016, 95% dos burocratas federais que fizeram doações registradas para um candidato na eleição presidencial doaram para Hillary Clinton. O controle dos democratas sobre a lealdade dos burocratas significa que esses funcionários podem atrapalhar e até parar qualquer tentativa dos conservadores de implementar políticas de que não gostam. Isso foi particularmente problemático para um presidente como Trump, que não queria jogar pelas regras convencionais estabelecidas pelos sociais-democratas em Washington e establishment que também inclui republicanos como Mitt Romney e Liz Cheney. Os presidentes podem fazer 4 mil nomeações políticas para cargos do governo, com cerca de 1,2 mil delas sujeitas à confirmação do Senado. Mas 50 mil burocratas têm autoridade para tomar decisões sobre questões políticas, e isso implode a lisura de um sistema justo de dentro para fora.

Um ato político

Há menos de 90 dias de uma eleição de meio de mandato, e com a possibilidade de os republicanos retomarem ambas as Casas legislativas (a Câmara com um “banho de sangue”, como dizem os analistas), o evento em Mar-a-Lago fica caracterizado não apenas como um ataque, mas um ato político. Para Adam Geller, especialista em pesquisas internas para o Partido Republicano, o ataque e a maneira como foi orquestrado e relatado dão aos eleitores republicanos e indecisos um choque que essencialmente respingará nas eleições de midterms e talvez além: “Não há dúvida de que os republicanos e o presidente Trump podem aproveitar isso para seu benefício político até 2024”. Para a estrategista democrata Carly Cooperman, Trump, com razão, transformará isso em uma oportunidade política: “Ele está reunindo sua base e alimentando seus apoiadores. Isso se encaixa perfeitamente com o que ele gosta de argumentar sobre o exagero do governo. Se isso não for nada muito sério, o evento realmente ajudará sua estratégia.” 

O cenário político para 2022 na América está se definindo rapidamente. O Partido Democrata deverá sofrer perdas históricas em novembro. Donald Trump estava prestes a anunciar sua candidatura presidencial para a corrida de 2024. No último domingo em Dallas, Texas, ele falou por quase duas horas no encerramento do CPAC, evento conservador norte-americano, e mostrou que em muitas pesquisas continua sendo o republicano favorito para a indicação — e bem à frente do atual presidente Joe Biden em uma suposta revanche em 2024.

Assim como no Brasil, uma atual republiqueta devido ao ativismo porco de membros judiciário e do atual STF, o “deep state” pode ser de enorme ajuda para os democratas, que buscam de maneira radical transformar o governo e a economia para se adequarem à sua agenda ideológica de extrema esquerda sem a presença de membros do Congresso. Os republicanos (assim como milhões de brasileiros) que querem drenar o pântano de Washington (e de Brasília) hoje se deparam com um serviço público não eleito, ativista e irresponsável que atua como um quarto Poder extraconstitucional do governo, e com veto efetivo sobre as políticas dos políticos eleitos.

É por isso que um número crescente de republicanos e independentes (e brasileiros) percebe que, se quiserem realizar alguma coisa na próxima vez que estiverem na Casa Branca (e no Planalto), terão de reformar o serviço público e a política. Os esquerdistas, nos Estados Unidos ou no Brasil, completamente desconectados da realidade, sabem que urnas aferidas não estão elegendo seus oficiais e, por isso, estão pavimentando um caminho em direção a um regime autoritário.

As Américas começam a ver uma divisão política nacional permanente. Não é uma simples ruptura entre democratas e republicanos, ou lulistas e bolsonaristas. Isso é simples demais. O que estamos vendo é a divisão entre pessoas que estão dispostas a usar o poder do Estado para silenciar seus oponentes e aquelas que estão preocupadas com a liberdade e o império das leis. O que manteve a América unida desde a Guerra Civil não foi a Constituição ou a Declaração de Direitos (Bill of Rights), por mais importantes que sejam esses documentos. A União Soviética possuía “leis de direitos” que garantiam a “liberdade de expressão e direitos iguais”. E os bolcheviques assassinaram seus adversários políticos e enviaram seus dissidentes aos gulags. Lavrentiy Beria, o chefe da polícia secreta mais implacável e mais antigo no reinado de terror de Joseph Stalin na Rússia e na Europa Oriental, se gabava de poder provar uma conduta criminosa contra qualquer pessoa, até mesmo um inocente: “Mostre-me o homem e eu lhe mostrarei o crime”. Essa era a infame ostentação de Beria.

O que nos mantém funcionando, mesmo com todos os defeitos detectados em nossas leis, diferentemente dos bolcheviques, é que nossas Constituições separaram os Poderes para impedir uma união partidária em torno de apenas um. Eleições têm consequências. As espinhas dorsais das eleições no Brasil, em outubro, e nos Estados Unidos, em novembro, nunca estiveram tão próximas e talvez nunca foram tão importantes não apenas para as Américas, mas para o Ocidente.

Título e Texto: Ana Paula Henkel, Revista Oeste, nº 125, 12-8-2022

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