sábado, 15 de outubro de 2022

Privatização da TAP corre o risco de ficar deserta e perda de dinheiro é inevitável

Especialistas em economia e aviação não duvidam que o Estado vá perder dinheiro com a venda da TAP, depois de ter injetado, nos últimos dois anos, 3,2 mil milhões de euros na companhia. Problemas estratégicos e concorrência das low-cost são apontados como os principais desafios


Rute Simão

As contas da TAP não são fáceis de fazer e se o presente da companhia é incerto, o futuro vislumbra-se envolto em dúvida e especulação. A privatização da empresa voltou a ser o tema do dia, 27 meses depois de o Estado ter passado um cheque de 55 milhões de euros a David Neeleman para recuperar a posição maioritária na TAP junto da Atlantic Gateway, e assumir 72,5% da companhia, em julho de 2020, ou seja, uma compra de 22,5% do capital. O objetivo era salvar a transportadora da bancarrota que apresentou, nesse ano, prejuízos de 1418 milhões de euros e uma dívida líquida de 2071 milhões de euros. Dois anos passaram com a bênção de Bruxelas a um plano de reestruturação que deu luz verde à injeção de 3,2 mil milhões de euros nos cofres da TAP. A última tranche da ajuda estatal, no valor de 990 milhões de euros, chega em dezembro e, antes disso, o processo para a venda do capital da companhia já deverá ter arrancado, revelou recentemente António Costa, que assumiu como meta a privatização em doze meses. O governo fecha-se em copas sobre os meandros do negócio, mas já assumiu que pode vir a perder dinheiro. Do pouco que já se sabe sobre a possível venda, este será um dado praticamente adquirido.

Esta é "uma lição demasiado cara" feita com os impostos dos contribuintes, lamenta o economista João Duque. "Claro que vamos perder dinheiro porque a TAP foi uma das moedas de troca para António Costa ter o apoio do PCP na ascensão ao poder. E como vemos, a TAP, afinal, não é estratégica para o Estado nem para Portugal, apesar de o PCP ainda o considerar", defende o também professor do ISEG. Para o economista, a TAP "nunca devia ter sido renacionalizada" e, por isso mesmo, defende a privatização e "quanto mais depressa melhor". A mesma opinião é partilhada pelo professor de aviação e turismo da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESTHE), Rui Quadros. "O melhor é privatizar o mais cedo possível antes que a companhia valha apenas um euro, e quando alguém aparecer, queira apenas os slots", concorda o especialista em economia do transporte aéreo, que aponta o Grupo Lufthansa como o comprador mais conveniente. "Pela sua rede e pela falta que fazem os destinos africanos e sul-americanos e também pela experiência, boa e má, que a empresa tem experienciado. A TAP tem rotas premium que fazem muita falta à Lufthansa", analisa.

Para já, há três nomes na corrida à compra da companhia liderada por Christine Ourmières-Widener: a alemã Lufthansa, a franco holandesa Air France-KLM e o grupo IAG, que detém a espanhola Ibéria e British Airways. E este pode ser um bom timing para as empresas estrangeiras olharem para Portugal. "Para quem quer ir às compras e para quem puder - ou seja, quem tiver liquidez e não estiver sujeito a restrições por ainda dever dinheiro de ajudas aos seus respetivos Estados o que é impeditivo de comprar outras companhias - a época pode ser boa. É como comprar roupa em saldos", compara Pedro Castro, diretor da SkyExpert. Ainda assim, o responsável da empresa de consultoria de transporte aéreo, aeroportos e turismo tem dúvidas sobre se, de facto, o negócio poderá interessar aos possíveis compradores.

"Creio que a intenção de privatização do governo irá ficar deserta, ou seja, não haverá interessados na compra, o que aliás já aconteceu no passado com esta companhia e já aconteceu com outras companhias também. Com o histórico que temos, não creio que algum privado aceite partilhar a TAP com este ou qualquer outro governo português. É demasiado antidemocrático, autocrático, nepotista e eleitoralista. E o valor de 100% da TAP será muito alto", refere, antecipando dois cenários possíveis: "O governo tem de se preparar para ou ter um concurso deserto e ser sancionado em eleições ou vender por muito pouco e ter os contribuintes furibundos".

Pedro Castro relembra ainda que os "processos de aquisição demoram largos meses a serem resolvidos e os interessados vão fazer também o seu trabalho de casa" e, por isso, acredita que "ninguém irá comprar a TAP antes de 2025". Rui Quadros também está pouco otimista: "Com os problemas que a companhia ostenta, neste momento, não me parece que ninguém venha a assumir o passivo da TAP sem uma contrapartida".

Alienação total

A percentagem que o Estado pretende alienar é outra das perguntas ainda sem resposta. Questionado no Parlamento esta semana sobre o assunto, o ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, chutou para canto. "Não se iniciou nenhum processo de privatização e é por isso que não estamos em condições de dizer como e quando [será feito] e quanto [custará]", disse.

João Duque afiança que a privatização total seria o melhor caminho. "Mas acredito que nem o Estado nem o comprador queiram verdadeiramente isso. Mas a vender parcialmente, a posição do Estado deveria ser residual e meramente simbólica", sugere. Vender o capital total da transportadora aérea de bandeira é também a posição defendida por Rui Quadros: "A TAP não vai a lado nenhum enquanto o acionista for o Estado. Assim sendo, a experiência diz-nos que o governo deveria privatizar na sua totalidade e sem telhados de vidro para os seus contribuintes que, na sua maioria, não voam na TAP". Já o economista Eurico Brito aponta para um cenário moderado. "Uma privatização em que o Estado possa defender a continuidade do hub e da cadeia de abastecimento da companhia por empresas portuguesas, mas perdendo a maioria do capital e assim permitindo o financiamento da TAP para desenvolvimento de frota e de rede, através dos novos acionistas ou do mercado de capitais", sustenta o também professor do ISEC.

As contas do problema

A lista de adversidades na TAP é complexa e transversal às principais fileiras da empresa. Aos problemas nas contas, somam-se a perda de capacidade em Lisboa, com a cedência de 18 slots à easyJet - outro dos remédios de Bruxelas -, o braço de ferro com os trabalhadores e as polémicas da administração. A mais recente respeita à aquisição de uma nova frota automóvel topo de gama.

A operação tem sido impulsionada com a retoma do turismo e com a recuperação de passageiros (5,823 milhões de passageiros até junho, praticamente o mesmo do que no acumulado do ano de 2021 e ainda 26% abaixo do pré-pandemia), mas no horizonte agigantam-se desafios. Em dezembro, a empresa tem de fechar as contas do ano com prejuízos inferiores a 54 milhões de euros, uma das imposições inscritas no plano de reestruturação aprovado pela Comissão Europeia, que também impede a companhia de receber mais ajudas do Estado a partir do próximo ano. O cheque final de 990 milhões de euros chega dentro de dois meses. Para trás estão mais 998 milhões de euros desembolsados: 536 milhões de euros em aumento de capital e 462 milhões em compensações por danos covid. A este bolo soma-se a injeção de 1200 milhões de euros de empréstimo em 2020, também convertido em capital.

Com o plano de transferências do governo concluído este ano, a TAP tem de regressar ao mercado para se conseguir financiar. O administrador financeiro da transportadora, Gonçalo Pires, confirmou, na conferência de imprensa de apresentação dos resultados do primeiro semestre, que a TAP está a preparar uma operação para refinanciar a dívida privada, que ultrapassa os 700 milhões de euros, conforme exigido por Bruxelas. E a privatização pode acalmar as águas na TAP? "Não acho que se deva acreditar na privatização como a salvação sagrada. Os problemas estruturais continuarão e não se resolverão com a suposta privatização. Depende dos bolsos de quem comprar e depende da participação e intervenção do Estado", diz Pedro Castro.

A concorrência das low-cost é apontada pelo economista João Duque como o maior desafio para a operação da transportadora. Com a Ryanair e a easyJet a ganharem quota de mercado no país, a estratégia da TAP deve reformular-se. "A TAP hoje está no limbo entre os preços de uma companhia de bandeira mas com serviços low-cost, pelo que há aqui uma dissonância que o mercado não percebe. Ou passa a companhia low-cost de uma grande rede ou passa a companhia de bandeira, mas então a prestar serviços de elevada qualidade", indica o economista.

O especialista Rui Quadros aponta outro possível caminho com a privatização: "A TAP poderá ser transformada numa companhia de alta performance regional, com voos de baixo custo em rotas de alta densidade e do segmento leisure e com voos em tarifas premium para destinos que sirvam os homens de negócio. Já está tudo inventado é só copiar e fazer bem", sugere, relembrando que é às companhias de baixo custo que cabe a "democratização do transporte aéreo". "Nos modelos do tipo tradicional, Full Service Carrier, apenas os grandes têm capacidade de voar e ser rentáveis. A história de que a TAP é dos portugueses e para os portugueses é mais um chavão que já ninguém respeita", lamenta.

Investimento e competitividade são outros dois fatores benéficos que podem advir da privatização, completa Eurico Brito, que olha também para o outro lado da moeda. "Se a privatização for feita com companhias europeias o perigo de perdermos o hub aumenta, situação agravada com a deficiência de capacidade do aeroporto de Lisboa, das dificuldades do espaço aéreo e da insuficiência de pessoal, nomeadamente de operações de terra e áreas de difícil recuperação, devido às perdas de quadros com a covid. Se o novo parceiro for de outro continente, o perigo de perda de distribuição de tráfego para a América e África diminui", defende.

Título e Texto: Rute Simão, Dinheiro Vivo, 15-10-2022

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