domingo, 23 de outubro de 2022

[As danações de Carina] Em trapos

Carina Bratt

‘Quando a vida se torna ingrata, tudo em derredor vira uma chatice difícil e pegajosa, mormente impossível de nos livrarmos dela pelas vias normais, ou seja, pelos caminhos do retorno ao que antes se fazia comum e lindamente maravilhoso’.
Janelle Taylor, escritora, autora do livro ‘Quando o vento soprar...’.

A VIDA SE TORNOU chata e irritante, desagradável e enfadonha, completamente sem razão. Não vejo alegrias em nada. Não vislumbro graças ou atrativos, galhardias ou deleites, tampouco motivos para abrir meu rosto num sorriso franco e a boca em escancares hiantes (1). 
Parece que os meus pés grudaram firmes no chão. Meus caminhos de múltiplas formas se tornaram cansativos e afadigosos; minhas horas espinhosas e insidiosas. Nada ou ninguém consegue me fazer pensar em algo bom. E olha que não sou, pelo menos eu acho... não sou tão velha assim...

Tempos atrás, coisa de alguns poucos anos transcorridos, a vida me sorria festiva e alegre, prazenteira e saltitante. As estradas futuras, a serem percorridas, se mostravam belas e radiosas, refesteladas (2) de encantos e formosuras.

Os horizontes, lá ao longe, se descortinavam maviosos (3) e cheios de presságios elegantes, bem como o porvir, ainda que coberto pelas incertezas do desconhecido fazia com que euzinha sonhasse de olhos escancaradamente abertos. E nessa época eu não era, ou melhor dito: eu não me via, nem sou, tão velha assim...

Hoje, pesadas lembranças de caras sisudas me vêm à cabeça. Nuvens carrancudas e sorumbáticas me envolvem em horas merencórias (4). Parece haver uma tempestade escondida, pronta a se formar a qualquer minuto, no instante seguinte. É como se o infinito, no próximo piscar de uma estrela, fosse se cobrir de pesadelos intransponíveis e me esmagar como a uma ratazana de esgoto.

Não me sinto uma ratazana de esgoto. Contudo, as forças me faltam, me fogem. O desanimo toma conta de tudo. Me sinto fraca e abatida, totalmente sem a expressão da plena Felicidade. Continuo batendo na tecla de que não sou tão... droga, eu não sou tão velha assim...

Oprimida pela verga (5) pesada da derrota, carrego os olhos vazios, e o coração desprotegido de sentimentos. A alma, outrora em flor, parece agora, ou melhor, não parece. Está sediada em transe de frangalhos. Meu corpo todo se transformou num trapo só. Um lixo, um ajuntado de ossos se decompondo, bem ainda as carnes ficando deterioradas e fracas.

A mim me parece, enfim, dentro em breve ter a ligeira impressão, ser uma linda e simpática defunta ambulante em busca de um buraco de sete palmos onde enfiar o que sobrar da minha estropiada carcaça. E olha... amigas, estou bem acordada. Juro por tudo o que é mais sagrado em minha vida: eu sou... claro que não. Eu não sou tão velha assim...

Notas de rodapé:

1) Hiantes – O que tem a boca desmesuradamente aberta.

2) Refesteladas – Aquele caminho entregue ao ócio, ao deleite, ou ao descanso.

3) Maviosos – Em harmonia, em sintonia suave e branda com alguma coisa.

4) Merencórias– Estar ou ficar em melancolias, ou por alguma razão, se ver deprimida, literalmente para baixo.

5) Verga – Curva, dobra, arqueio. No texto, sinalizei vencida pela derrota.

Título e Texto: Carina Bratt. De Brasília Distrito Federal. 23-10-2022

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