domingo, 16 de outubro de 2022

[As danações de Carina] Fase adulta

Carina Bratt  

ÀS VEZES, não sei explicar os motivos, me bate uma saudade adormecida e abrandada. Ela se aproxima de mim, sem razão aparente.  Acorda do nada e vem lá do fundo da alma onde estava quietinha e sossegada. Se faz, num piscar de olhos, numa megera indomável. E surge aos meus esbugalhos, aturdida, desorientada, como um vendaval furioso devastando tudo o que encontra pela frente. Chega, por conta, numa afoiteza perturbadora e bagunçada, para me fazer voltar aos primórdios da infância.  E, de fato, me leva ao tempo do tempo do grupo escolar, em Curitiba, no Paraná, minha terra natal.  

Traz na mala de viagem lembranças das amigas e dos amiguinhos das salas de aulas, dos professores e, então, eu desperto correndo, atarantada, do meu mundinho de agora. Sem escapatória, afasto meu presente e me deixo ser levada e enleada pelo ‘tempo-ontem’, que guardo dentro do âmago, como uma ternura imorredoura que por mais que a vida corra, não perde o brilho resplandecente dos anos transcorridos. Recordo, nesses breves instantes, da casa grande, do rio, da mãe e do pai... 

Revivo as mil e tantas brincadeiras que em dias de hoje foram substituídas pelos moderníssimos e chatos aparelhos celulares, tidos como de ‘última geração’. Nesses registros ‘outrorais’ (1), volto a ser aquela menina de tranças, dos chapéus, das flores nos vestidinhos, das saias curtas, das alpargatas nos pés. Regrido aos seis, aos oito, aos quinze, quando corria desembestada pelo quintal, que brincava de balanço, de pula corda, de descer o morro a bordo de um carrinho de rolimã. Retrocedo, incontinente, aos banhos de lama com as irmãs Pati e Viviam, filhas de dona Ofélia, nossa vizinha de cerca. 

Rememoro as corridas de sacos, das farras na casa da árvore frondosa que meu pai construiu. Aos dezesseis, já havia lido todos os livros de José Mauro de Vasconcelos (2) e voava, a mil por hora, em busca de paisagens distantes, pequenos paraísos bem ‘Longe da Terra’ (3), onde ficava o meu ‘Palácio Japonês’ (4) (que de japonês não tinha nada) e somente eu sabia o caminho. Com ‘Rosinha, Minha Canoa’ (5), descia o rio e, quase noite, ficava de papo furado com o menino Zezé meu amigo imaginário que me ensinou a conversar com o ‘Meu Pé de Laranja Lima’ (6). 

Engraçado! Meu pé de laranja lima não ia além de um velho abacateiro bem lá nos cafundós dos fundilhos do quintal. Embora houvesse um rio caudaloso, de margens incertas, da mesma forma que ele, eu não tinha ao alcance das mãos, uma canoa para chamar de Rosinha. Aos dezessete, me via presa ao chão quanto as árvores frutíferas que moravam em derredor da habitação aconchegante de meus pais. À tarde, por volta das cinco, saia catando as folhas desfalecidas, possivelmente tiradas da vida, pelos redemoinhos de um vento que soprava furioso uma canção que parecia querer devastar tudo que encontrasse pela frente.  

Hoje, escudada no espigão de cimento armado da ‘Torre Um’, onde resido, ainda sinto aquele vento. Ele sopra beliscando a minha face com salpicos de memórias de um tempo terno e auspicioso que bem sei, não voltará jamais. Às vezes, o meu ‘hoje’, me sorri esquálido (7). Meus medos e receios, parecem brotar de debaixo do tapete da minha sala. Noutras, tentam segurar meu fôlego, embargar minha voz, a vontade de gritar... contudo, o ‘agora’ se faz mais denso e pesado e, no instante seguinte, volto a ser a Carina mulher, vestida na armadura Bratt dos trinta e um. 

Renasço jovem, bela e formosa, vivendo os dias atuais de olhos desmesuradamente abertos em direção ao futuro. O futuro está ali adiante e logo chegará com o novo dia que ainda está em berço materno, à espera de nascer auspicioso. Às vezes, não sei explicar os motivos, me bate uma saudade enfadonha e abrandada.  Ela me acorda saudosa. Desperta de coisa alguma e vem lá do âmago da alma, onde estava ‘adormecidamente’ quietinha. Vem com tudo para me fazer voltar aos primórdios da infância. Corro, então, até a varanda do meu apê e espio o vazio à minha frente.  

A avenida, lá embaixo, está deserta. Tudo está árido e estéril. Nos prédios fronteiriços, do outro lado da calçada, poucos apartamentos mantém as luzes acesas. São gatos pingados como eu, em busca de alguma coisa para tentar esquecer o que sufoca, ou o que mantém a dorzinha chata e angustiante insistindo em miar e, de contrapeso, não rachar no trecho, sumindo nas brumas do para sempre. Um som agudo, como se o prédio tremesse nas bases, soa forte.  A sua estrutura me traz correndo para o meu ‘Agora’. 

Meu rosto está coberto por lágrimas avulsas. No meu peito, o coração frangalhado (8) bate em sintonia de súplica reprimida. No céu escuro, bem lá em cima, estrelas dançam numa espécie de balé frenético na pele da noite. Mordo os lábios, receosa. Meu Deus, receosa de quê? Nada de grave! Nada que precise me fazer arrancar os cabelos ou bater com a cabeça na parede. Bem sei, a parede segura as minhas paranoias. Foi só a criança ingênua que havia em mim, foi só a menina que atonou (9), impaciente. Faz tempo... muito tempo que ela cresceu, virou moça e se foi embora... 

Notas de rodapé:

1) Outrorais – De outrora. Algo que lembra um ontem distanciado.   

2) José Mauro de Vasconcelos – Escritor carioca nascido em Bangu, Rio de Janeiro, aos 26 de fevereiro de 1920. Faleceu em 1984, aos 64 anos, em São Paulo, onde morava numa casa-chácara bonita rodeada por altos muros, entre a Aldeia de Carapicuíba e Viana, Km 22 da Rodovia Raposo Tavares. 

3) ‘Longe da Terra’ – Romance de José Mauro de Vasconcelos.

4) ‘Palácio Japonês’ – Romance de José Mauro de Vasconcelos.    

5) ‘Rosinha, Minha Canoa’ – Romance de José Mauro de Vasconcelos. 

6) ‘Meu Pé de Laranja Lima’ – Romance mais famoso de José Mauro de Vasconcelos. Vendeu, quando de seu lançamento, mais de 2 milhões de exemplares. Foi traduzido para 52 idiomas.

7) Esquálido – O mesmo que desalinhado, sórdido, imundo e mesquinho.

8) Frangalhado –  Variante de frangalho, ou seja, tudo aquilo que está em pedaços. No texto, sinalizei o ‘meu coração deformado, alquebrado, em pandarecos’.  

9) Atonou – Tudo o que vem à tona, ou à superfície. 

Título e Texto: Carina Bratt. De Belo Horizonte, em Minas Gerais. 16-10-2022

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