domingo, 30 de outubro de 2022

[As danações de Carina] Como se comesse pêssegos ásperos

Carina Bratt

‘Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que os sonhos são feitos é o mais árduo que um varão pode empreender, embora penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou que amoldar o vento sem rosto’
Jorge Luiz Borges

EU NÃO TENHO a mínima ideia do que acontece, embora não seja a primeira vez e, certamente, não será a derradeira. Todavia, sempre que a coisa vem à tona, eu me questiono: será que tudo foi verdade, ou apenas um sonho bobo que se fez real no imaginário tresloucado de uma de minhas noites mal dormidas? Não importa! O fato é que acordo toda molhada.

Literalmente. Encharcada da cabeça aos pés. O corpo suando em bicas, a alma pingando lembranças, o âmago chorando pitangas antigas e o coração, coitado, batendo num descompasso medonho como se fosse me sair pelos ouvidos num grito ensurdecedor. De vez em sempre o ‘Meu Toda Por Dentro’ se debulha em saudades passadas e me faz sair do sério, mesmo estando quietinha e serena nos braços fortes de Morfeu (1).


Às vezes penso ser uma menina boba, tentando me achar num mundo de esquizofrênicos à beira de um ataque de nervos. A cama realmente jazia ensopada, o lençol, os travesseiros, como se do nada um dique de uma cachoeira igualmente inexistente tivesse se rompido e inundado meu apartamento. Pulei, às carreiras. Nessas horas, sempre me movimento doidivanamente (2) em busca de meu próprio socorro.

Saltei, pois como se a bunda, motivada por molas debaixo da calcinha, me impulsionassem a um pinote tipo assim, ornamental. De repente, meus pés pisaram um chão conhecido, todavia naquele momento do contato tive a impressão de ambular (3) à esmo um espaço esquisito do qual eu não tivesse nenhum relacionamento mais íntimo.

Corri para a sala, liguei o som, abri as cortinas. Tropecei em Garcia Márquez (4) e me senti como se fizesse parte da ‘Memória de uma de suas putas tristes’ (5), que começara a ler na noite anterior. Não, eu não era uma delas. Me veio à cabeça um impropério em forma de palavrão. Me contive não deixando que tomasse forma em minha boca e saísse a bel prazer do meu espírito conturbado.

Abri as cortinas e me deparei com prédios sisudos à frente, afundados um ou dois andares abaixo da minha varanda, como se de suas estruturas me olhassem espantados e vissem, em mim, uma espécie de bicho arredio, enjaulado em sintonia de extinção. Um sol radioso me salvou. Entrou ligeiro, sem pedir licença e se fez majestoso em todos os cantos e recantos da sala.

Olhei para o mar. Me veio à lembrança o inebrio (6) salutar de Jaime Vieira (7). ‘O mar se agitou e ondas rolaram seixos dando gargalhadas. Também, pô! O voo rasante das gaivotas fazia cócegas na sua superfície’ (8). Agradeci a sugestão do poeta. Abri os braços, como se fosse saltar. Não, muito alto. Não sou uma gaivota. De mais a mais, não chegaria viva lá embaixo.

Daria trabalho ao porteiro, incomodaria à polícia e, no raiar do dia seguinte, sairia no jornal com cara de defunta fresca, além de atrapalhar a vida do síndico, o vai e vem dos moradores e, logicamente, das pessoas transitando na calçada. Ainda que bela e formosa, a ideia mirabolante de uma cadavérica ‘defunta fresca’ seria vista com tristeza pelos que devoram os jornais matutinos com essas notícias estapafúrdicas.

Abri os braços como se abraçasse o mar. E, de fato, o estreitei em meu peito. Ah, o mar! Logo ali, a direita, do outro lado da avenida movimentada. Me refiz por inteira de ideias acolhedoras e ideais benévolos e hospitaleiros. Retrocedi nos passos e volitei (9) em direção ao banheiro, deixando pelo caminho a pecinha de nylon e a camiseta que sempre uso para dormir. A água fria e insensível do chuveiro com seus poros de macho castrado me afastou da peladice (10), a fadiga estonteante.

Mandou para longe da minha nudez, a lombeira. Escafedeu com o enfado, e colocou um final feliz na transpiração incômoda da acordação (11) malparida. Depois do banho, o café. Um dejejum no capricho, como início de um novo dia, sempre me renova o espírito e me restaura as esperanças. Lado igual, me remoça, me dá ares benfazejos e me transporta para um mundo diferente, um planeta onde pôr mais distante que seja, eu me sinto plena e realizada, remoçada e dona de mim.

Claro que em outras manhãs vindouras voltarei à estaca zero, ou seja, a despertar sorumbática, suando como porca engordada à espera do corte certeiro que lhe tirará a vida num chiqueiro de periferia; como égua no cio à cata de um ‘pegador’; como vaca medrosa pelo enfrentamento da inseminação artificial; como fêmea sem garanhão e o ‘mais importunante: sem ter, logo depois, o mínimo juízo do que realmente aconteceu.

Verdades, mentiras, sonhos ou realidades embrutecidas, me trarão novos suores e puladas ao sabor de um calor estafante. Outros tropeços surgirão em algum romance deixado no tapete da sala... tudo faz parte do ciclo cotidiano de uma jovem moça na casa dos trinta. Passo seguinte, tirada a barriguinha da miséria, me dirijo para o Home Office (12) ambulante, em face das constantes viagens Brasil e mundo afora, como agora, divorciada do meu cantinho-lar.

Hoje é sábado. Amanhã tem a disputa das eleições (graças a Deus não votarei por estar fora do meu domicílio eleitoral). O mais urgente, diretamente da deslumbrante suíte do hotel onde eu e Aparecido estamos: escrever a crônica de amanhã, para as minhas ‘Danações’ de domingo. Que bom poder mergulhar no despenhadeiro do meu ‘eu e íntimo regaço’, ainda que sem uma ideia concebida, lógica e perfeita do que realmente enviarei para a honrosa e querida ‘Família Cão que Fuma’.

Notas de rodapé:

1) Morfeu – O deus do sono.

2) Doidivanamente – Desajuizadamente, que age com extravagancia.

3) Ambular – Andar para qualquer lugar, perambular.

4) Garcia Márquez – Escritor colombiano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1982.

5) ‘Memória de minhas putas tristes’ – Um dos renomados romances de Garcia Márquez.

6) Inebrio – Embebedar, extasiar,

7) Jaime Vieira – Poeta, natural de Marília, São Paulo. Autor de vários livros, entre eles, ‘Outonos’, ‘Desencontros’ e ‘Ecos e Gritos’.

8) Poema de Jaime Vieira – do livro ‘Asas’.

9) Volitei – Mesma coisa que esvoacei, voei, caminhei ou fui.

10) Peladice – Corpo pelado, ou sem roupas. Estar nu.

11) Acordação – Ato ou efeito de deixar de dormir.

12) Home Office – Escritório em casa ou em qualquer lugar em que a pessoa possa trabalhar.

Título e Texto: Carina Bratt. De Viracopos, Campinas, São Paulo. 30-10-2022

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