sábado, 22 de outubro de 2022

Uma facada na democracia

O Brasil se tornou uma distopia. Quem poderia imaginar que as páginas de ficção de 1984, escritas por George Orwell em 1949, se tornariam o cotidiano do brasileiro em 2022?


Ana Paula Henkel

Depois de vivermos tempos sombrios durante a pandemia, quando “duas semanas até achatar a curva” se tornaram dois anos de opressão, coação, tirania e insanidade promovidos por governantes, legisladores e até juízes no Brasil e no mundo, agora o brasileiro ganha a versão estendida de um cenário de ações e medidas só vistas em ditaduras e regimes totalitários. Já durante a pandemia, o Brasil pôde sentir o gostinho das canetadas inconstitucionais que viraram febre em nove entre dez juízes, magistrados e projetos de tiranetes. Mas não parou por aí. O preço do silêncio de muitos diante de incontáveis atos de claro desrespeito à nossa Constituição não ficou apenas nos históricos anos de 2020 e 2021. Totalitarismo e tirania, pilares de ditaduras, não são implantados da noite para o dia, e o 2022 dos brasileiros, ano de eleição presidencial, seguiu as páginas distópicas de Orwell. Depois de sermos cerceados e guilhotinados por questionar um vírus que pode ter sido criado em laboratório, vacinas experimentais sendo forçadas na população, tratamento, lockdown e medidas restritivas inconstitucionais, fomos cerceados de questionar e debater medidas de maior segurança para o nosso sistema eleitoral.

O “Ministério da Verdade”, presente na ficção de Orwell e transportado para a nossa realidade em assustadora velocidade, vem ditando há mais de dois anos o que pode ou não ser debatido ou questionado no Brasil. A tirania do judiciário brasileiro que temos vivido através de ministros do STF e do TSE, que fere prerrogativas exclusivas do legislativo e executivo, deu passos gigantes nesta semana em direção ao absoluto totalitarismo.

Em algumas decisões para lá de autoritárias, ministros do (P)TSE/STF proferiram votos tão absurdos que ninguém precisa ser advogado ou jurista para entender a bizarrice das palavras ditas por aqueles que deveriam apenas aplicar o que já está escrito em nossa Constituição. Na toada que censurou veículos de imprensa como a Jovem Pan e a produtora Brasil Paralelo nesta semana, Alexandre de Moraes bradou as seguintes palavras em seu voto a favor da censura: “(o conteúdo) …é a manipulação de algumas premissas verdadeiras, onde se juntam várias informações verdadeiras, que ocorreram, e que traz uma conclusão falsa, uma manipulação de premissas”. Ou seja, você até pode estar diante de fatos verídicos e documentados nas páginas da história, mas o ministro achou melhor você não ver ou ouvir algo que — embora verdadeiro! — pode fazer com que você tire as conclusões erradas — leiam-se conclusões de que eles não gostam. Não pudemos questionar, debater e até opinar em 2020 e 2021. Em 2022, não podemos questionar, debater, opinar e concluir. 

O curioso é que no livro do próprio Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, no capítulo 12 podemos ler: “A liberdade de expressão e de manifestação de pensamento não pode sofrer nenhum tipo de limitação prévia, no tocante à censura de natureza política, ideológica e artística”. E continua: “A censura prévia significa controle, o exame, a necessidade de permissão a que submete, previamente e com caráter vinculativo, qualquer texto ou programa que pretende ser exibido ao público em geral. O caráter preventivo e vinculante é o traço marcante da censura prévia, sendo a restrição à livre manifestação de pensamento sua finalidade antidemocrática. O texto constitucional repele frontalmente a possibilidade de censura prévia.”

Para o caso da Jovem Pan, os comentaristas e o próprio noticiário foram proibidos de informar os brasileiros sobre os fatos que envolvem a condenação de Lula. Debates que permeiam o próprio campo jurídico no país sobre o assunto foram categoricamente suspensos. A emissora argumenta que a decisão da Corte Eleitoral foi proferida “ao arrepio do princípio democrático de liberdade de imprensa”, que proíbe qualquer forma de censura e obstáculo para a atividade jornalística. “Não importa o contexto, a determinação do Tribunal é para que esses assuntos não sejam tratados na programação jornalística da emissora. Enquanto as ameaças às liberdades de expressão e de imprensa estão se concretizando como forma de tolher as nossas liberdades como cidadão neste país, reforçamos e enfatizamos nosso compromisso inalienável com o Brasil. Acreditamos no Judiciário, nos demais Poderes da República e nos termos da Constituição Federal de 1988. Defendemos os princípios democráticos da liberdade de expressão e de imprensa e fazemos o mais veemente repúdio à censura”, diz o comunicado oficial da emissora que mais cresceu em audiência no último ano no Brasil.

O respeitado jurista Modesto Carvalhosa [foto] disse nesta semana que o TSE promove uma “censura prévia” à Jovem Pan, ao impedir que a emissora veicule determinados conteúdos sobre o ex-presidente Lula, como corrupção e condenações: “A medida feriu o artigo quinto da Constituição, inciso XIV, que assegura o acesso à informação a todos. Não temos um regime democrático efetivo, a partir da clara tendência do tribunal de defender uma das partes do candidato. E a Corte Eleitoral está fazendo isso de uma maneira grosseira e antijurídica. A censura é uma forma de impedir que os eleitores tenham acesso aos fatos. O resultado da eleição está maculado por esse ato de força do TSE contra um dos veículos de imprensa brasileiros”, afirmou Carvalhosa. 

Em mais decisões tirânicas completamente desenfreadas, a ministra Cármen Lúcia, vetando a veiculação de mais um documentário da produtora Brasil Paralelo (Quem Mandou Matar Jair Bolsonaro?), ensaiou uma defesa da liberdade de expressão e de imprensa, mas acabou sucumbindo ao tosco corporativismo da Corte. Durante a votação que guilhotinou mais uma vez a liberdade de expressão, ela disse: “Não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil. Medidas como esta, mesmo em fase de liminar, precisam ser tomadas como algo que pode ser um veneno ou um remédio. Vejo isso como uma situação excepcionalíssima. Se, de alguma forma, isto se comprovar como desbordando para uma censura, deve ser imediatamente reformulada esta decisão”, completou. Apesar de sua declaração, Cármen Lúcia, que já bradou as “corajosas” palavras “cala a boca já morreu” para defender a liberdade de expressão, votou favoravelmente às restrições de veiculação do documentário. Disse ser uma situação “excepcionalíssima” e que as determinações serviriam para assegurar a segurança do pleito. Segurança de quem?

Por que hoje a corte que deveria manter a ordem no país só consegue trazer caos e divisão?

Não custa trazermos, enquanto ainda podemos, parte da decisão do STF na ADI 4451, de 2018, quando a suprema corte no Brasil declarou inconstitucionais — por unanimidade — dispositivos da Lei das Eleições que vedavam sátira a candidatos. Curiosamente, todos os ministros seguiram o voto do relator — sim, Alexandre de Moraes —, segundo o qual os dispositivos violavam as liberdades de expressão e de imprensa e o direito à informação. Em um trecho do documento, a Corte decidiu:

“São inconstitucionais os dispositivos legais que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, subordinação ou forçosa ou adequação programática da liberdade de expressão a mandamentos normativos cerceadores durante o período eleitoral”.

Tem mais.

“Tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de Total visibilidade e possibilidade de Exposição crítica das mais variadas opiniões sobre os governantes.”

Não acabou, não.

“O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas estão sob a guarda dessa garantia constitucional.”

A cereja do bolo dessa votação, que pode ser encontrada no YouTube, é a declaração do atual traidor da Constituição e da pátria, Alexandre de Moraes. Na época, ele disse: “Quem não quer ser criticado, quem não quer ser satirizado fique em casa. Não seja candidato, não se ofereça ao público, não se ofereça para exercer cargos políticos. Essa é uma regra que existe desde que o mundo é mundo, e querer evitar isso por meio de uma ilegítima intervenção estatal na liberdade de expressão é absolutamente inconstitucional”. 

O que mudou? Por que hoje a corte que deveria manter a ordem no país só consegue trazer caos e divisão? Diante de nossos olhos, a clara devoção não apenas a um corrupto condenado em três instâncias por magistrados apontados por esse mesmo político corrupto, mas a vontade de fazer parte de um projeto nefasto de poder.

A obra 1984, de George Orwell, foi publicada em 1949 como uma advertência contra o totalitarismo. Na Oceania de Orwell, um dos três estados totalitários em guerra perpétua (os outros dois são a Eurásia e a Lestásia), o território é governado pelo Partido, que controla tudo e que fez uma lavagem cerebral na população para uma obediência impensada ao seu líder, o Grande Irmão. O Partido criou uma linguagem propagandística conhecida como Novilíngua, destinada a limitar o livre pensamento e promover as doutrinas do Partido. Suas palavras incluem o duplipensar, crença em ideias contraditórias simultaneamente, que se reflete nos slogans do Partido: “Guerra é paz”, “Liberdade é escravidão” e “Ignorância é força”.

Para quem não leu o livro, não espere mais nenhum segundo. Sem maiores spoilers, o herói do livro, Winston Smith, vive em uma Londres que ainda está devastada por uma guerra nuclear que ocorreu pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Ele pertence ao Partido Externo (Outer Party) e seu trabalho é reescrever a história do Ministério da Verdade, alinhando-a com o pensamento político atual. No entanto, o desejo de Winston pela verdade e decência o leva a se rebelar secretamente contra o governo. Ele embarca em um caso proibido com Julia, uma mulher que pensa da mesma forma, e eles alugam um quarto em um bairro habitado por Proles. Winston também se interessa cada vez mais pela Irmandade, um grupo de dissidentes. Sem o conhecimento de Winston e Julia, no entanto, eles estão sendo observados de perto pelo Grande Irmão (Big Brother).

Quando Winston é abordado por O’Brien, um oficial do Partido que parece ser um membro secreto da Irmandade, a armadilha está armada. O’Brien é, na verdade, um espião do Partido, à procura de “criminosos de pensamento”, e Winston e Julia são eventualmente capturados e enviados ao Ministério do Amor para uma reeducação violenta. Algo como o atual “ódio do bem”. O aprisionamento, a tortura e reeducação de Winston que se seguiram destinam-se não apenas a quebrá-lo fisicamente ou fazê-lo se submeter, mas a erradicar sua independência e destruir sua dignidade e humanidade. Na Sala 101, onde os prisioneiros são forçados à submissão pela exposição aos seus piores pesadelos, Winston entra em pânico quando uma gaiola de ratos é presa à sua cabeça. Ele grita para seus algozes: “Faça isso com Julia!” e afirma que não se importa com o que aconteceria com ela. Com esta traição, Winston é libertado. Mais tarde, ele encontra Julia, e nenhum deles está interessado no outro. Em vez disso, Winston passa a amar o Big Brother que agora o protege.

Winston é o símbolo dos valores da vida civilizada, e sua derrota é um lembrete pungente da vulnerabilidade de tais valores em meio a estados todo-poderosos e totalitários, seja pelas mãos de presidentes, monarcas ou togados. A obra foi escrita como um aviso após anos de reflexão de Orwell sobre as ameaças gêmeas do nazismo e do stalinismo. Sua representação de um estado onde quem ousar pensar diferente e questionar será “premiado” com tortura, onde as pessoas são monitoradas a cada segundo do dia e onde a propaganda do Partido supera a liberdade de expressão e pensamento é um lembrete sóbrio dos males de governos irresponsáveis. 

Em 2018 o então candidato Jair Bolsonaro levou uma facada e quase morreu. Quatro anos se passaram e, nesse período, demonizaram e desumanizaram um homem que foi eleito democraticamente e que jamais ousou rasgar uma página de nossa Constituição. Em 2020 e 2021, silenciaram o mundo “pela saúde”, “pelo bem coletivo”. Desumanizaram médicos, pais, cientistas, cidadãos. Guilhotinaram virtualmente todos aqueles que ousaram questionar o atual Big Brother. Em 2022, silenciaram brasileiros preocupados com nossas urnas, silenciaram empresários livres, prenderam e silenciaram parlamentares eleitos pelo povo, silenciaram um ex-ministro da Suprema Corte do Brasil que ousou dizer que Lula não foi inocentado. E agora silenciaram a imprensa.

Em 2022, a democracia no Brasil sofreu um duro golpe e corre risco de morte. Mas não se preocupem, a censura é “apenas por duas semanas”, só até achatar a curva.

Título e Texto: Ana Paula Henkel, Revista Oeste, nº 135, 21-10-2022

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