sexta-feira, 9 de junho de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Vã oscilação de consciência

Aparecido Raimundo de Souza 

DESPERSONALIZARAM MEUS HÁBITOS
da noite para o dia. Adulteraram a coisa toda, de forma radical. Claro que não auspiciava ser corrompido assim sem mais nem menos. Inverteram também meus costumes e mexeram nas usanças do dia a dia. Mudaram, como dizem os antigos, ou melhor explicado, me transformaram “da água para o vinho”. Foi uma reviravolta rápida e rasteira, assim como num abrir e fechar de pálpebras. De repente, eu que vivia intensamente cada minuto da minha vida, que dormia duas ou três horas por noite, que amanhecia em farras e regozijos com os amigos, ora tomando cerveja pelos bares das redondezas, ora envolvido com vadias em busca do sexo fácil, sem que esperasse por essa mudança brusca, me vi assim, tolhido, impedido, paralisado, sem saída, preso como um inativo, às portas do desconhecido, do obscuro, tal como se tivesse sido agarrado por fortes mãos de um ser misterioso que surgiu de um bueiro qualquer, e, sem que esperasse, se postou diante do meu caminho me impedindo seguir adiante.

Eu que beijava bocas e línguas de gostos diferentes, que chupava xototas metidas em calcinhas contaminadas por porras de pintos fedendo a podridão, eu, que jogava bola com os moleques na praia do Leme, que pegava ondas no “Postinho” da Barra da Tijuca, e, à tarde, caminhava com a turma de conhecidos de um extremo a outro da Barata Ribeiro, agora me vejo aqui deitado feito um babaca, os olhos perdidos nos labirintos do não sei onde, um lugar imundo e fétido, vendo as horas passarem, o dia nascer e morrer, a noite ir e voltar sem que nada de novo ou de anormal dentro do meu normal aconteça. Meus vizinhos, esses, coitados, parecem um bando de fantasmas errantes, assustados com a própria estupidez. Para se ter uma ideia, o morador do meu lado direito, reclama das cachaças que não pode mais beber. O condômino do lado esquerdo, buzina o tempo todo em meus ouvidos a desdita de ter perdido a perna num acidente de moto. A beldade que está logo atrás de mim é uma jovem de vinte poucos anos, e, apesar de muito nova e imatura, passa a semana inteirinha se lamentando pelas mágoas que o marido lhe causou e das dores de cabeça que teve com ele por causa das amantes ricas que assediava para dar golpes e extorquir uma graninha fácil, sem precisar pegar no pesado.

O confinante da frente é uma tremenda bichona. Desmunheca o tempo todo. Pegou aids do companheiro com quem morou três anos e meio. Pelas proezas que me enumerou, parece não ser flor que igualmente se pudesse cheirar. Segundo seus relatos, dava o traseiro com cu e tudo para quem aparecesse e chegava em casa tardão da noite. Como vivia com um rapaz que desconhecia seus hábitos fora porta da sala, ainda tinha que soltar o caneco para não tomar um pé no rabo e se mudar para os bancos imundos da Serzedelo Corrêa. Já não quero falar dos que estão em quadras mais abaixo. Na verdade, cada um desses meus prezados que dividem esse terreno imenso onde Judas Perdeu as botas, não têm lá muitas opções de existência. Por essa razão, as particularidades de cada um servem de padrão guia para os demais. Resumindo: somos uma imensa família de cadáveres navegando no mesmo barco, à procura da um porto seguro onde descansar a exaustão que nos definha o corpo, e, de contrapeso, corrói em câmera lenta as nossas carnes até os cafundós dos ossos.

No entanto, às vezes, me ponho a pensar com meus botões: ontem minha vida era boa e farta, apesar do trabalho cansativo, dos perrengues que passava, no ir e vir para a empresa. Meu Deus, aqueles ônibus lotados, com pessoas fedendo a suores, cidadãos gritando, fumando ou se queixando da sorte, sem mencionar o salário de merda, os sonhos que pretendia realizar, porém, ficavam distanciados de meu bolso em face de não ter um centavo para investir no que almejava. Pois é. Hoje estou aqui, esquecido, abandonado, fodido, a barriga em petição de miséria, o esqueleto ao léu. Virei uma espécie de cisco com cara de pó. Ontem —, ontem podia ver o mar, olhar o céu azul, andar na chuva, sentir o vento desfazendo meus cabelos, contemplar a beleza das flores, maravilhar os ouvidos com o cantar dos passarinhos... ontem eu podia abraçar meus filhos, meus netos, sair com eles para comer pipocas na pracinha do Lido, ou pegar um cinema no Roxy, na Bolívar. Outrossim, nos finais de semana, visitar meus parentes, muito embora fosse um pouco rejeitado pelos consanguíneos.

Todavia, mesmo me sentido solitário em meio dos meus pares, algo me repletava de prazeres e rejubilava meu coração de alegrias. Apesar de viver com a solidão colada nos colhões, um punhado de tristezas pesando na aba do meu chapéu, ia remando a canoa. Seguia driblando as tristezas, empurrando para escanteio as amarguras e aprendendo a coexistir com os percalços. Havia uma luz muito fraca, lá longe, no distanciado dos meus devaneios, que brilhava. Embora remota, essa flama se revestia de uma esperança imorredoura e, por vezes, quando à vontade de acabar com a existência medíocre apertava, ou ensandecia meus medos de ideias macabras e mirabolantes (como dar um tiro de misericórdia na cabeça, ou me jogar na frente de um carro), ela misteriosamente me acalmava os ânimos, desenhando diante do meu vazio, uma empolgação eufórica e ímpar que revigorava todo meu ser tornando o recôndito avivado e jubilado de um encorajamento sempiterno e longevo. Nessas horas, esse lume tênue quase a se esvair em pesadas nuvens, parecia ter o dom mágico de fazer algo surgir de coisa alguma e inverter tudo em derredor dos meus passos num suntuoso e indescritível clarão divinal.

Essa cintilação batia em meu rosto como uma promessa de porvindouros melhores. No entanto, hoje, bem, hoje, não vejo mais esse alvor. Meus agora são eternamente lúgubres e iguais. Não há futuro, não há presente, não há amanhã. Na verdade, não há exatamente nada, nem sequer resquícios de agora. Nada elevado ao quadrado que, por misericórdia opere o milagre de fazer tudo ficar num apicilar inextinguível. O grande caso é que estou morto, sem o sopro da vida. Enterrado nesse cemitério de periferia, à entrada da cidade. Ao meu lado, sepulturas e jazigos com velhos cadáveres apodrecendo as horas, esperando, como eu, o milagre de retornar à vida antiga, curtir novamente o mar infinito, o céu azul, o vento sibilando, os pássaros... talvez... sentar em frente ao calçadão da praia de Copacabana e agradecer pelo fato de ainda não estar totalmente decomposto pelos vermes de plantão. Dar vivas e urras, involucrado pelo agasalhamento fatal, apesar dos sete palmos de terra por cima dos costados.

O mais gratificante. Retribuir grandemente ao Pai Maior, pela oportunidade de compreender que tudo — como e que é? Isso mesmo! Tudo não passou de um engulho macabro. Não estou morto. Não sou um cadáver em estado putrefatado. Não me acho num campo de almas em busca de rezas. Pela graça, por um milagre, tudo que eu pensava ser, não passou de um pesadelo medonho, embutido num terrível, divorciado e enigmático incerto. Viva, viva, viva! Confesso, agora que descobri a realidade, me penitenciar por estar em estado de alegria, usque não ter passado todo esse desespero inominado de um malgrado engodo. Em verdade, confesso, não queria, não acolheria de mente aberta, não toleraria em sã consciência, ou pior, não vislumbraria, pelo menos por agora, houvesse chegado à minha beira, a vez da expiação, ou seja, o sinistro de partir para o outro lado. Se tivesse que subir, o faria constrangido, grilhetado, forçado. A me ver no andar superior, deixaria aqui embaixo o que há de melhor para se usufruir e gozar. Em vista desse susto, agradecer pelo fato de ainda não estar com sete palmos de terra por cima dos costados. E sobretudo, em repeteco, dar vivas e glórias por compreender que tudo não passou de um sonho, apenas, um surto “psicoticamente” macabro, um pesadelo indescritível, um futuro terrível que, embora incerto, não queria, ou melhor não quero, chegue jamais, à minha vez de dizer adeus. E quando esse derradeiro minuto se aproximar —, que eu esteja bem longe. De preferência, quilômetros e quilômetros de distância da meiga senhorita dona da Foice.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. 9-6-2023 

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