Alexandre Homem Cristo
O ato de reescrever a
história não é direcionado para quem conheceu a Guerra Fria, mas para as
gerações futuras. Porque o futuro da ideologia comunista depende de que não se
conheça o seu passado.
A Patrícia está a decorar a
sua casa e colou na parede uns postais que reproduzem cartazes de propaganda da
União Soviética. Ela é uma mulher de centro-esquerda, e é sobretudo uma pessoa
culta e informada: sabe que a URSS foi um regime totalitário, que oprimiu povos
e matou milhões, e que assombrou a Europa durante o século XX. Ou seja, ela
sabe que colar aqueles cartazes não é o equivalente a colocar um quadro na
parede – eles têm um significado político e moral. Um significado com o qual
ela não se identifica. Só que, diz-me, não resistiu ao apelo estético. Mas,
pergunto-lhe, e se fossem cartazes da Alemanha nazi, da Itália fascista ou do
Estado Novo? Nesse caso, tal coisa nunca lhe passaria pela cabeça. Ou seja,
afinal, o critério não é apenas estético.
Este exemplo transporta-nos
para algo que tantas vezes constatamos: associa-se um certo glamour aos
totalitarismos e autoritarismos de esquerda, que tanto servem de pano de fundo
de espectáculos (os Mão Morta usam no palco imagens de Estaline e Mao), como
servem de modelo de negócio (comercializando cartazes da URSS ou t-shirts do
Che Guevara, entre centenas de produtos nostálgicos). Algo que não tem paralelo
com os regimes autoritários de direita, em que qualquer utilização semelhante é
imediatamente repudiada.
O ponto aqui não é realçar a
hipocrisia de se tolerar selectivamente um totalitarismo à esquerda e de se
rejeitar outro à direita, como se houvesse totalitarismos bons e maus, ou
autoritarismos bons e maus. A hipocrisia é óbvia. E, por mais absurda que a
distinção seja, ela faz-se. A questão é porquê.
Uma das razões é a eficácia
com que a esquerda comunista (que está ideologicamente alinhada com esses
regimes) reescreve a história. E, neste caso, ‘reescrever’ significa ‘lavar’,
tirar-lhe as manchas. Não é por acaso que o PCP considera que a queda do Muro
de Berlim representou a destruição das “realizações económicas, sociais e
culturais de mais de 40 anos de poder dos trabalhadores” na ex-RDA. Não é
coincidência que Miguel Tiago, deputado do PCP, branqueie o massacre de
Tiananmen pelo regime chinês, afirmando não existirem provas desse massacre
(pelo que o mesmo não passa de um “campanha” dos EUA). E não é surpresa que
Bernardino Soares veja no regime da Coreia do Norte uma potencial democracia,
que o PCP rejeite condenar os seus crimes contra a humanidade, e que o jornal
Avante! sirva de veículo de difusão da propaganda do regime.
Habituámo-nos a olhar para
estas ‘lavagens’ históricas com desdém e, mais ainda, a denunciá-las. E
convencemo-nos que, fora do PCP, não haverá quem acompanhe estas e outras
tomadas de posição tão irrealistas e anacrónicas. Mas a verdade é que o que nós
achamos delas não importa muito. O acto de reescrever a história não é
direccionado para quem conheceu a Guerra-fria, o muro de Berlim ou o massacre
de Tiananmen. Esse propósito tem os olhos no futuro – nas gerações futuras, sem
essa memória e à mercê de várias versões da história. Porque até para o PCP uma
coisa é certa: o futuro da ideologia comunista depende de que não se conheça o
seu verdadeiro passado.
Falar do PCP aqui é, no fundo,
falar de vários partidos comunistas pelo mundo, alinhados para transmitir uma
mesma mensagem. Serão mesmo tentativas ridículas e vãs de reescrever a
história? Não: é tudo uma questão de horizontes. No final, não serão os
comunistas a mudar os anais da história, mas o facto é que a Patrícia gosta
mesmo dos seus postais. E vai colá-los na parede.
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