O canalha é sempre cordial, um ameno, um amoral e costuma ter
uma fluorescente aura de simpatia.
Nelson Rodrigues
Quando você sente vergonha não
pelos seus atos mas pelos atos alheios, ou no lugar de quem deveria ter sentido
mas não sentiu, isso se chama vergonha alheia.
Amigos sempre me perguntam se
Lula será condenado.
Eu me treinei, os outros me
treinaram e a vida me treinou para o exercício da advocacia. O Direito foi o
meu mundo por décadas. Estudei, li e observei bastante para isso, mas não
somente para isso, sempre atento às palavras de um grande jurista cuja
advertência ou conselho se traduz numa frase de atilado alcance: “Quem somente
sabe direito, nem direito sabe”.
Há um outro jurista que
adverte que “o momento crucial do direito é o da interpretação da norma”,
apontamento de suma importância para advogados, juízes e promotores.
Como trabalha o advogado? O
cliente expõe uma situação, relata os fatos e quer uma solução. O advogado
examina todos os fatos narrados ou documentados e tenta enquadrá-los em uma ou
em um conjunto de normas e emite uma opinião.
Acontece que a profissão do
advogado é de uma contenciosidade enorme. Nas outras profissões não há um
colega dispendendo esforços em sentido contrário, enquanto na advocacia há
sempre alguém do outro lado trabalhando no mesmo caso, para a parte contrária,
com o objetivo oposto ao seu. Tentará extrair dos mesmos fatos uma conclusão
diversa da sua para obter uma vitória que seria o oposto daquilo que você
busca.
Não conheço os detalhes do
“caso Lula”, melhor dizendo, dos “casos Lula”, eis que o homem responde a
inúmeros inquéritos, ou processos criminais.
No caso do apartamento, a sua
defesa cinge-se ao fato de não haver documento probatório de que a propriedade
do imóvel é dele. Todo mundo sabe que a propriedade de imóveis se prova por uma
escritura levada a registro público. Assim, se tal documento não existe o
imóvel não está em seu patrimônio, vale dizer que qualquer gasto ou
investimento feito pela empresa construtora foi desembolso em proveito dela
própria, pois em nome dela remanesce o apartamento, segundo a ótica da defesa
de Lula.
Mas as coisas não são simples
assim. Nem sempre o formalismo jurídico prepondera, principalmente em se
tratando, como se trata, de atos que, a juízo do Ministério Público, têm a
aparência normal de direito para encobrir atos contrários ao direito.
A fraude tanto existe no
direito comum como no direito penal. Busca-se sob a capa ou aparência de um ato
aparentemente normal se praticar outro contrário ao direito. O ato aparente não
é o querido, e o querido não está aparente. Nesse caso, os indícios e
circunstâncias, aliados ao depoimento testemunhal, são importantes na formação
do conjunto probatório. Não tenho os elementos em mãos, mas o juiz, com o que
já tem em mãos e com o que terá ao final da instrução criminal, disporá de base
suficiente para condenar, ou, se for o caso, absolver o réu.
Mas não vim aqui para lavrar
sentença em um processo de que não sou juiz e cuja confederação de provas não
conheço em toda sua extensão e profundidade. Não, não é esse meu propósito.
Preocupa-me a dimensão política e histórica do conjunto de fatos detrimentosos
que envolvem a figura sem par de Lula.
Senti um constrangimento
pessoal imenso em assistir Lula perante um juiz criminal prestando depoimento e
usando de argumentos pueris em sua própria defesa e, mais do que isso, a tentativa
solerte de colocar a sua mulher, a sua companheira, no centro de fatos
nebulosos, para dizer o mínimo. Esteve o tempo todo dosando uma estratégia
lamentável. Colocava a mulher como figura central do imbróglio do apartamento,
mas não podia ser evidente demais para não arrostar a reação adversa da opinião
pública que, felizmente, não aceita que o marido macule a imagem da própria
mulher. Ficou como a senhorita na tempestade, não sabia se segurava a saia ou a
sombrinha. Homens dignos não fazem isso. Já os espertos, palavra que uso para
não ser ofensivo, hão de ostentar, como diz Nelson Rodrigues, “uma fluorescente
aura de simpatia“.
Nenhum homem deve e um homem
de dimensão histórica, dominador e poderoso como Lula, não pode, mesmo que
sutilmente, macular a memória da esposa falecida, mulher do lar, simples e
simplória, cujas todas as fichas, morais e sentimentais, colocou no jogo do
marido.
Lembrem-se que, quando ainda
primeira dama, mandou arrumar o jardim do palácio presidencial, que só comporta
símbolos republicanos, para formar uma estrela vermelha, símbolo do PT, como de
resto de todos os países ou movimentos comunistas. Comportamento mais
simplório, impossível. Na sua simploriedade nada mais buscou do que fazer um
mimo ao admirado e amado marido. Agora, imaginem, caros amigos, se a mulher de
Fernando Henrique tivesse mandado ordenar as flores do jardim para formar um
tucano.
Não se diga que o preconceito
me leva a descrevê-la como pessoa simplória. Nada disso. Escrevi aqui, nesta
página, lá embaixo, um verdadeiro hino às pessoas simples e simplórias, ao
criar as figuras de Zé Fifó e Escolástica Avarb no texto que intitulei “O UNIVERSO PARALELO E O BRADO RETUMBANTE DE ZÉ FIFÓ”. Minha admiração pelo
casal era enorme, particularmente por Escolástica Avarb. Acho que ninguém
notou, mas Avarb lido de trás para frente significa brava. Gente como Zé Fifó e
Escolática, a Brava, existe aos milhões Brasil a fora, todos dignos de minha
admiração, pessoas trabalhadoras e honestas que conseguem ser felizes, às vezes
muito felizes, embaladas pela simplicidade de uma vida desprovida de qualquer
luxo.
Pela versão de Lula, um belo
dia, o diretor da quarta maior construtora do País resolveu faturar algum e
pensou em ligar para o presidente para lhe oferecer um apartamento, leva-lo
pelo braço até lá, como se diretores de grandes construtoras fossem corretores
de imóveis, como se as pessoas não soubessem que as construtoras, ao fazerem um
lançamento, entregam o empreendimento, para venda, a uma corretora que tem know
how para tanto.
Ainda segundo sua tosca
versão, nem ele, nem o juiz, nem os promotores sabiam da existência de ladrões
na Petrobrás. Fez tal afirmação e contemplou o juiz com ar de triunfo como a
comemorar “nesta te peguei!”, para ser lembrado pelo juiz que nem ele nem os
promotores nomearam os ladrões. Os ladrões foram escalados para a Petrobrás
pelo próprio Lula. Esse foi, talvez, o momento de maior constrangimento para
ele.
Dentro de sua lógica torta
todos os delatores se auto incriminaram e inventaram delitos com o só propósito
de prejudicá-lo. Pela sua versão dos fatos, há uma espécie de confabulação
universal, um verdadeiro alinhamento de astros para prejudicar o seu horóscopo.
Voltará a ser presidente?
Muito difícil. Não terá mais uma confederação de partidos a apoiá-lo, embora
conte com o voto de grotões embrutecidos e de uma esquerda que perdeu a
condição de se indignar e não mais faz distinção entre torpeza e virtude. Mas,
como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes, está sempre
substituindo um absurdo por outro maior ainda.
Agora mesmo, encerrando estas
linhas, vejo que o casal de marqueteiros responsáveis por sua campanha e pela
de Dilma entregaram mais uma vez esses dois lamentáveis personagens de nossa
vida política. Mas não importa, embora as evidências e os depoimentos ganhem
dimensões amazônicas, Lula continuará a sustentar que não passam de mais astros
se alinhando para alterar a sua casa astral.
Lula era para ser um nosso
Lincoln, levado pelos pais à mesa de jantar como um exemplo para os filhos, um
homem que, a despeito da origem, chegou aonde chegou; todavia, pelo que já se
sabe, virou uma advertência, um homem que, a despeito de ter chegado aonde
chegou, não vale a pena.
Contudo, nada disso me deixou
tão abalado como ver aquela figura triste na tentativa de convencer as pessoas
de uma inocência sepultada pelos fatos. Até a estrada de Santos sabe que o
apartamento de fato não pertencia à OAS.
Não sei qual será o destino de
Lula, não sei se será condenado ou se um dia será preso, mas sei que para se
salvar ou justificar o injustificável expõe a memória da mulher, pisa na
própria biografia e cospe na própria figura. Sei também que algo constrangedor
é você sentir vergonha por outra pessoa.
Fui dormir constrangido, senti
vergonha por ele e pelos que o apoiam.
Título e Texto: Pedro
Frederico Caldas, 11-5-2017
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