terça-feira, 22 de outubro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Compulsivo

Aparecido Raimundo de Souza

NA AMPLA SALA ATULHADA com pessoas saindo pelo ladrão, dona Palmira, nervosa e quase às raias de um piripaque, faz cara feia e ralha severamente com o filho:
- Abcelvio Junior, tira o dedo do nariz.
Minutos depois volta a boa senhora a brigar com o guri. Grita:
- Pelo amor de Deus, Abcelvio Junior tira o dedo do nariz do seu amiguinho. Que coisa feia... Paulinho, meu anjo, desculpa os modos do meu bebê mamãe.

Agora, quem se zanga é o eriçado Abcelvio Junior:
- Pare de me chamar de bebê mamãe. Não sou mais criança.
- Não é essa a impressão que me passa.
Mais algum tempo à frente e torna dona Palmira a chamar a atenção do moleque:
- Abcelvio Junior, meu querido, por favor, tire o dedo do nariz da Mariazinha. Olhe para os pais dela logo ali adiante. Pela cara feia que seu Murilo está fazendo, creio que falta pouco para vir até aqui e lhe dar uns tabefes. E com razão...

- Ta mãe. Que coisa! Mas olha só. Veja se não tenho motivos. O nariz da Mariazinha é tão bonitinho... Aliás, “ela é toda... Toda... Toda, perfeitinha...”.
- Pare de cantarolar, criatura. Respeita esse momento. Procure se aquietar ao lado de seu pai. Que droga!
Não passa meia hora e lá vem dona Palmira de volta, pegando Abcelvio Junior pelo braço e encostando o piá num canto. Espreita comprido de um lado e depois de outro. Esbraveja zangada e colérica:

- Já estou me irritando com esses seus modos. Será que nem os buracos do nariz da filha do seu Luiz da padaria você perdoa?
O garoto, todavia, não esquenta a cabeça. As palavras da sua genitora entram por um ouvido e saem pelo outro. O pestinha dá um rodopio inesperado e espetacular sobre si mesmo e escapa das mãos da mulher e volta a correr e se misturar aos presentes. Dona Palmira segue atenta, não lhe dando tréguas. Voa nos calcanhares. Não desgruda não desagarra, não dá folga:

- Abcelvio Junior seu filho de um jumento... Por tudo quanto é mais sagrado. Tire o dedo do nariz da Fernandinha. Respeita sua prima. Pombas. Olha a idade dela. 
- Aiiiiii... Mãe! Não me belisque... Que coisa! Fefê nem reclamou...
- Filho de uma égua. E precisa? Ela é uma mocinha educada, fina, frequenta boa escola. Responda? Precisa que ela diga alguma coisa? Moleque dos infernos toma modos. Se comporte. Dá uma geral para às pessoas à nossa volta...

- Ta mãe. Estou dando uma geral...
- Prometa que vai parar com essa mania...
- Prometo. Vou parar. Pronto. Parei.
- Nada disso. Jure.
- Ta bom. Eu juro!
- Por quem?
- Sei lá...

- Jure por Deus.
- Não.
- Por que não?
- Porque é pecado. A minha professora de religião, dona Doralice... Olha ela sentada ali ao lado do banheiro com o esposo... Ela disse mais de uma vez que a gente não deve jurar o nome de Deus em vão. Por falar nisso, Eliseu, o filho dela acabou de me chamar...

- Que se dane o Eliseu. A mim não importa se ele acabou de lhe chamar. Vamos, jure por Nossa Senhora...
- Nem morta!
- Como é que é? Repita o que acabou de vomitar. Acaso virou fresco, agora? Saiu do armário?
- Modo de dizer, mãe. Credo!
- Ok. Desculpe. Estou nervosa. Você é a causa do meu estresse.  Então jure por Nossa Senhora.
- Essa ai é ainda pior... To fora.
- Não entendi. Explica.

- Nossa Senhora é a mãe de Jesus.  Jurar em vão, em nome da mãe de Jesus também é pecado. Pecado mortal se quer saber de verdade...
- Então, merda, jure por você mesmo...
- Não posso...
- E por que não?!
- Eu não sou santo.

Antes que a mulher se refaça das respostas do seu rebento, o abrasado desembesta passando por debaixo da saia dela e corre com um bando de coleguinhas em direção ao estacionamento. Todavia, dona Palmira, igualmente não abre a guarda. Insiste. Por um longo espaço, o assanhado some da sua área periférica. Apavorada com a mania chata do filho de viver enfiando o dedo no próprio nariz e o mais degradante, cutucando o nariz das pessoas (ele é um rinotilexomaniaco obsessivo), notadamente nas vias respiratórias das meninas, suas parceiras de escola, a pobre criatura continua à cata do capetinha por todos os espaços possíveis e imagináveis. Não o encontra.

Retorna ao salão principal. Eis que lá está ele, o seu Abcelvio Junior em carne e osso, aprontando mais uma. Dona Palmira, ao se deparar com aquela cena degradante, perde as estribeiras.
- Puta que pariu. Só me faltava essa!
Sem pedir licença às pessoas, a boa senhora abre caminho em desabalada carreira, tropeçando aqui e ali, derrubando, nesse avanço tresloucado, jarros e cadeiras. Afoitada por chegar rápido ao destino, colide feio em um senhor e, por pouco, ambos não caem de boca no chão, levando, com eles, de roldão, um bonito arranjo de flores.

- Abcelvio Junior, seu filho de uma vagabunda safada.  Já cansei de falar pra você parar com essa maldita mania de enfiar o dedo no nariz das pessoas. Isso é muito feio. É falta de respeito. Tenha compostura. Você não é mais uma criança. Será que não toma vergonha nessa fuça? Espia para os lados. Repare que estão todos voltados para nós. Vou contar até três... Um...
- Para com isso, mãe. O pai aqui do meu lado não me falou nada dizendo se isso é feio ou não... 
- Seu pai é “uma banana”. Meu Jesus, o que é que estou dizendo?!

As pessoas, em derredor, pedem silêncio. O padre olha de cenho franzido para o Abcelvio Junior e termina repousando o seu agastamento no semblante da mãe do pueril:
- Senhora dona Palmira, por favor. Vamos deixar essas trivialidades para depois?
A mulher está vermelha de raiva. Parece um tomate. Por conta desse enfezo pisa com toda força no pé do arteiro:
- Se eu flagrar você de novo com esse dedo porco no nariz de quem quer que seja...

- Mãe... Olha o seu vigário...
Dona Palmira faz uma pequena pausa. Derrama para a galera em volta um perfil cansado, extremamente fadigado. Mira o padre e continua possessa:
- Foda-se o padre. Se eu flagrar você de novo com esse dedo porco no nariz de quem quer que seja... Repetindo, para que não esqueça... Se eu pegar você de novo, peço licença às famílias que estão aqui nesse velório e boto, por tudo quanto é mais sagrado... Boto você amarrado dentro desse caixão, tampo a porra da urna e mando os coveiros enterrarem a sua sem-vergonhice junto com o corpo de seu falecido pai. Agora, por favor, vá lavar essas mãos, criatura abominável. Ande, olhe para seu pai, olhe para seu pai... Daqui a pouco o Abcelvio se emputece, levanta lá do além e vem aqui lhe meter a mão na orelha... 
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 22-10-2019

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