Estamos ainda nesta fase, a empurrar para a
frente para que o sistema de saúde, não apenas o SNS, não colapse. Mas o
aplanar da curva implica o prolongamento da agonia.
Fernando Leal da Costa
Uma palavra de pesar, muito
pesar, pelo desaparecimento precoce da Dra. Catarina Sena. Tive o gosto de a
conhecer quando trabalhamos juntos no gabinete ministerial do Prof. Coreia de
Campos. Era uma senhora notável que muito me ensinou e a quem nunca agradeci o
suficiente. Acompanhou e ajudou membros de sucessivos governos e é, sem dúvida,
uma das grandes obreiras dos sucessos do Serviço Nacional de Saúde. Não são os
governos, com a sua efemeridade, que asseguram a perenidade das medidas. São
pessoas, como a Dr. Catarina Sena, que garantem a proteção da saúde dos
Portugueses. Vai nos fazer muita falta.
Vamos às observações a que
voltarei com mais desenvolvimento em próximos capítulos. Desde já aviso que há
algumas repetições de ideias anteriores, vestidas de forma diferente, mas com a
repetição há maior probabilidade de chegar a quem possa ter interesse neste
tema.
1 Agora SÓ se fala do que interessa,
a COVID-19. Desapareceram os gafanhotos de África, os Nalaxitas de um
Pradesh qualquer, os (T)(C)urdos já não se esgadanham na Mesopotâmia, a
Antártida arrefeceu e a Gretinha calou-se. Estaria tudo perfeito se não fosse o
maldito vírus. Felizes aquelas pessoas de uma remota ilha do arquipélago de
Andaman, esses mesmos, os que recebem os turistas à flechada. Se nós, os
infetados, os respeitarmos e à sua paradisíaca ilha, ainda passam por isto sem
COVID-19 e sem telejornais cheios de gráficos.
2 As doenças normais passaram todas
à categoria de doenças raras. Foi preciso um Flávio Paixão, Português que joga
futebol em Gdansk, vir dizer o que tem sido incômodo e escamoteado. “É verdade
que já morreram mais de sessenta e cinco mil pessoas, mas por ano morrem 10 milhões com
cancro, mais não sei quantos milhões com sida, sem falar nos que morrem em
África com fome.” Reconciliei-me com o jogo da bola. “Por isso… não vejo
televisão. Por quê? Há muitas pessoas a falar de medicina que não são doutores.
Quanto mais falam, maior é o pânico.” Ah grande homem!
3 Sublinho que, para lá da ironia da
observação anterior, o trabalho jornalístico feito em Portugal e no Mundo tem
sido de muito elevada qualidade. Jornalístico, baseado em informações, com
fontes citadas e, não raras vezes, com a introdução de link para
os artigos. Até a mim, profissional da saúde, têm sido de extrema utilidade.
Obrigado a todos, mais uma vez, pelo que têm feito. E, porque não tenho falado
com ele e todos reconhecemos o seu brilhantismo, incluo neste grupo de
divulgadores científicos o Dr. Paulo Portas que nos tem trazido análises
baseadas em factos e se mantém distante do simples comentário “acho que”. Tem
feito serviço público. Também nem sempre resisto a “achar e disso me
penitencio. Mas não me coíbo de criticar, como tenho feito, excessos de
“achismo” não informado.
Leiam jornais que neste tempo vale bem a pena. É justo que se pague o esforço de quem trabalha. Sublinho que não tenho interesse pecuniário com estas notas que aqui vou deixando, neste teto de internet em que o Observador gentilmente me acolheu. Junto-me, sem que me tenham pedido, ao apelo para que assinem os periódicos que entenderem preferir. A nossa liberdade depende de jornalismo profissional.
Leiam jornais que neste tempo vale bem a pena. É justo que se pague o esforço de quem trabalha. Sublinho que não tenho interesse pecuniário com estas notas que aqui vou deixando, neste teto de internet em que o Observador gentilmente me acolheu. Junto-me, sem que me tenham pedido, ao apelo para que assinem os periódicos que entenderem preferir. A nossa liberdade depende de jornalismo profissional.
4 As nossas instituições precisam de
muita clinical governance que não têm tido. Os planos de
segurança clínica não existiam ou eram muito incipientes. Teria sido mais fácil
evoluir a partir de uma base de orientações em caso de ameaça biológica do que
partir do zero. Os profissionais devem ser o cerne da governance,
entendida enquanto garantia de efetividade, eficiência, controlo de riscos e
satisfação, ou seja, da qualidade. E é no core business, na
promoção da saúde e prevenção da doença em todos os níveis, que as instituições
devem estar focadas. Os recursos existem para dar respostas aos desafios
presentes e antecipando necessidades futuras.
A primeira parte, a das
respostas aos desafios presentes, estava “no fio”. A segunda, a antecipação das
necessidades futuras, não tinha sido feita. A gestão financeira é um
instrumento e não um fim. O ministério da saúde nunca mais poderá ser um agente
das finanças. Nunca mais. Não se esqueçam de que outras pandemias, outras
crises, virão.
5 A especialidade de saúde pública
é, no imediato, a grande “vencedora”. Ficou agora claro, para quem ainda
tivesse dúvidas, que a saúde pública precisa de enfermeiros e médicos
especializados e em número adequado. Pena que esteja a ser preciso uma quase
tragédia para que isto fosse ainda mais claro. Uma parte da população já
interiorizou que é agente de saúde pública. Que essa consciência não passe
depois da pandemia.
6 Não houve pico pandêmico, nem vai
haver. Se as medidas de contenção que têm adiado a explosão funcionarem, apenas
haverá pontos de inflexão da curva. O que está em causa é a dimensão da área
debaixo da curva de casos. Essa área corresponde ao infetados. Com
“achatamento”, volto a repetir, o período de alastramento da infeção estende-se
e até poderá acontecer que o número total de infetados seja maior ao fim de um
ano ou dois, do que se tivesse havido um sino mais alto. Mas esse sino, com
pico elevado, estaria associado a mais mortalidade e mais saturação dos
serviços de saúde. Não seria bom.
Os países que apostaram na estratégia de imunidade selvagem, coletiva, estão a mudar de opinião. No entanto, uma estratégia que tivesse incidido muito mais sobre a proteção de grupos de maior risco, nomeadamente os mais idosos, sem que tivesse sido imposto recolher obrigatório a toda a economia, poderia ter sido mais avisada de início. Bastaria ter fechado acessos ao País em devido tempo e ter confinado os potenciais transmissores em vez de os ter convidado a ficarem confinados.
Bastaria ter um sistema de saúde mais bem coordenado, com melhor liderança global e intermédia, sem preconceitos ideológicos, com medidas de proteção pensadas a tempo, com circuitos de diagnóstico e assistência organizados antecipadamente. Nada disso aconteceu. Talvez bastasse ter um sistema de saúde que não estivesse à partida com a sua capacidade ultrapassada e um Serviço Nacional de Saúde (SNS) com reserva para expansão. Não tínhamos. Estamos ainda nesta fase, a empurrar para a frente para que o sistema de saúde, não apenas o SNS, não colapse.
O aplanar da curva implica o prolongamento da agonia. Todavia, em termos éticos não seria possível aceitar a propagação descontrolada da epidemia depois de estar instalada. Para já, se fizerem as contas, Portugal tem, à data da elaboração deste texto, pouco mais de 1% da população com SARS-CoV-2 identificado nas suas gargantas, e países como a Itália e Espanha andam um pouco acima dos 3%. Até os casos de maior visibilidade, como os EUA, ainda correspondem a situações de incidência populacional baixa, próxima dos 2%. A grande exceção é a China que começou a lidar mal com o problema, deixou que ele se exportasse com a conivência da OMS, para acabar bem e ilustrar a importância da quarentena global para controlar a expansão da 1ª vaga da Covid-19.
Os países que apostaram na estratégia de imunidade selvagem, coletiva, estão a mudar de opinião. No entanto, uma estratégia que tivesse incidido muito mais sobre a proteção de grupos de maior risco, nomeadamente os mais idosos, sem que tivesse sido imposto recolher obrigatório a toda a economia, poderia ter sido mais avisada de início. Bastaria ter fechado acessos ao País em devido tempo e ter confinado os potenciais transmissores em vez de os ter convidado a ficarem confinados.
Bastaria ter um sistema de saúde mais bem coordenado, com melhor liderança global e intermédia, sem preconceitos ideológicos, com medidas de proteção pensadas a tempo, com circuitos de diagnóstico e assistência organizados antecipadamente. Nada disso aconteceu. Talvez bastasse ter um sistema de saúde que não estivesse à partida com a sua capacidade ultrapassada e um Serviço Nacional de Saúde (SNS) com reserva para expansão. Não tínhamos. Estamos ainda nesta fase, a empurrar para a frente para que o sistema de saúde, não apenas o SNS, não colapse.
O aplanar da curva implica o prolongamento da agonia. Todavia, em termos éticos não seria possível aceitar a propagação descontrolada da epidemia depois de estar instalada. Para já, se fizerem as contas, Portugal tem, à data da elaboração deste texto, pouco mais de 1% da população com SARS-CoV-2 identificado nas suas gargantas, e países como a Itália e Espanha andam um pouco acima dos 3%. Até os casos de maior visibilidade, como os EUA, ainda correspondem a situações de incidência populacional baixa, próxima dos 2%. A grande exceção é a China que começou a lidar mal com o problema, deixou que ele se exportasse com a conivência da OMS, para acabar bem e ilustrar a importância da quarentena global para controlar a expansão da 1ª vaga da Covid-19.
7 Não se podem confundir as curvas
que resultam da adição de novos casos, com a que se faz com a percentagem de
crescimento de casos. É a primeira que nos indica a verdadeira evolução da
situação quanto ao número de doentes. Só se poderá falar de alívio quando o
número de casos novos, a incidência, for inferior ao número de casos
resolvidos. Para já, ao que parece, estamos numa fase de estabilização do
crescimento. Mesmo que a percentagem de casos novos diários diminua, em função
da contagem do dia anterior, a acumulação do mesmo número de casos, dia após
dia, é tudo menos redução total de casos. Logo, é diferente de dizer que a
doença está a desaparecer ou que o pico foi ultrapassado. Nem vai desaparecer
milagrosamente.
8 Não há subnotificação de casos por
causa de alguma manigância. A curva “errática” de casos novos, de que se tem
falado com alguma frequência, é um problema de registo. Relembro que casos
registados apenas indicam o que se sabe de pessoas a quem foi feito o teste. É
um proxy interessante e é aceitável assumir que o número real de
infetados é dez vezes maior, pelo menos.
Nada de grave, embora este
número revele que é preciso conter todos e não apenas os que já se sabe estarem
infetados. Todos devem usar máscaras!
O que interessa agora é
acompanhar em cada país, sem fazer comparações espúrias entre cenários
nacionais diferentes, a evolução de casos novos registados, assumindo que os
sintomáticos, ao menos esses, serão quase todos testados. Se esse número
diminuir, ainda melhor se for diminuindo apesar do aumento do número de
testados, estaremos no bom caminho de resolução da 1ª vaga.
Todavia, o número de mortos
crescer mais do que o número de novos casos pode até ser uma “boa” notícia.
Andar a contar casos novos e depois ficar preocupado porque há menos casos, mas
observar que a mortalidade continua a crescer é um não problema. A mortalidade
pode continuar a crescer depois da incidência diminuir. É uma questão de time
lag. Para morrer da Covid-19 é preciso ter a Covid-19. Aqui a galinha veio
antes do ovo. Há, infelizmente, doentes que vão morrer e só morrerão uns dias
depois de serem encontrados com a Covid-19. E o número mais interessante é o
número de doentes internados e não o de doentes internados em cuidados intensivos.
O primeiro dá-nos uma ideia da
evolução da pandemia em Portugal e da gravidade dos casos novos. O segundo
dá-nos uma ideia da capacidade de resposta intensiva, mas não nos garante que
todos os doentes que precisem de cuidados intensivos os tenham recebido.
9 Não faço coro com os que olharam
para a substituição do presidente da SPMS como um ato político. Acredito que
foi uma substituição feita no momento errado, sem elegância e sem etiqueta.
Nada mais. O que não quer dizer que não teria sido correto avisar o Prof.
Henrique Martins com antecedência e agradecer-lhe os serviços prestados à
nação, que foram muitos.
Escolheram, para substituto,
um apparatchik do PS e eu, que nunca apreciei o modelo da
CRESAP, nem acho mal. Ao menos que a ministra confie no homem. Se correr mal, a
responsabilidade também será da Dra. Marta Temido, mais uma para juntar a
tantas outras.
Neste momento, o maior desafio
da estatística do ministério é garantir que as plataformas de reporte
funcionem, em tempo real, e que haja data managers em tempo
inteiro para registar, compilar, ler e interpretar os dados. A linha SNS 24
morreu, sucumbiu aos golpes que foram dados na sua credibilidade. Vai ter de
renascer, depois desta pandemia, com tecnologias melhores, maior responsabilidade
dos operadores, com contrato de serviços imediatamente expansível, com preços
melhor ajustados, com funcionalidades mais adequadas ao século XXI e, acima de
tudo, acompanhada por uma profunda renovação de todas as formas de contato
direto com as instituições e os seus profissionais.
10 O nosso adorado Professor
Marcelo, por quem confesso ter simpatia e admiração, lá se deixou confinar e
testar, embora à luz – desta vez acertei – de critérios iníquos e duvidosos.
Remeteu-se à lavagem de meias e cuecas, presume-se que fritou uns ovos e
deu-nos descanso. Voltou, cheio de força e remeteu as graves decisões para o
Dr. António Costa. Fez bem e deveria ter ficado por aí. O Senhor Presidente
pode fazer os testes que quiser. Nada disso nos interessa. Mas não pode
servir-se da sua exacerbada propensão para deixar que lhe façam testes e
análises para fazer propaganda de instituições prestadores de cuidados de saúde no mercado privado. É uma violação da neutralidade presidencial e um abano na
concorrência leal entre operadores comerciais. Mais relevante quando faz um
teste de utilidade ainda por documentar e cria a impressão de que esse teste,
na verdade ainda inútil, é necessário. E para completar, reforça a ideia de que
há filhos, ele, e enteados, os outros que não têm direito ao teste. Esteve
muito mal.
11 Aos do governo, a esses, já não
há quem ature. Tanta conferência para anunciar o nada é mais do que o nada
possível. “…reality must
take precedence over public relations, for nature cannot be fooled” (frase
atribuída a Richard Feynman). Sim, é verdade, há citações que eu guardo
para um dia usar. Tem sido a vez deste físico. Há muitas e boas.
Título e Texto: Fernando Leal
da Costa, Observador, 11-4-2020,
0h08
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