Luiz Felipe Pondé
A quarentena virou tendência
de comportamento. O chique é estar de quarentena brincando de aspirador de pó,
conversando com plantas, cozinhando brócolis, fazendo ioga e lendo russos.
Não fazer quarentena é coisa
de pobre, bolsonarista, ignorante e fumante. De repente, o chique é posar de
igualdade social. Imitar as empregadas enquanto faz live. Peste
"instagramworthy" (peste que vale uma live).
É claro que isso passa ao
largo do desespero real e vira uma espécie de gourmetização da peste, criando
algo como um surto psicodélico em escala social.
De onde esse povo inteligente
tirou a ideia de que o mundo vai mudar depois da peste? A primeira prova de que
não vai mudar nada é que os inteligentinhos coronials já estão em ação.
Nunca vi tanto self-marketing
se vendendo como se fora amor à vida. E disseram que o mundo não ia voltar ao
normal? Já voltou, em parte. A vaidade, o oportunismo, o marketing de
comportamento, o mercado dos horrores afetivos, as feministas dizendo que
dominarão o mundo, tudo aí, pra quem quiser ver. Alguém já provou que vírus só
existe em sociedades patriarcais e carnívoras? Logo coletivos de ciências
sociais o farão. Enfim, o ridículo voltou às ruas.
Olhemos de mais perto a
sintomatologia. Sempre achei a disciplina de clínica médica fascinante: uma
espécie de trabalho de detetive mergulhado em sinais e sintomas pra identificar
possíveis causas.
Um dos sintomas do corona no
plano cognitivo e intelectual é o oportunismo do horror. Esse já identificamos.
Vamos adiante. Outro, também no plano das funções cognitivas, é achar que a
humanidade vai mudar depois da peste.
Uma possível explicação para
esse sintoma talvez seja o desespero e o tédio que a quarentena gera em nós. É
compreensível. Mas, a humanidade já passou por inúmeras pestes piores que esta
e nunca mudou. Esta é, apenas, a primeira "instagramworthy".
Depois da espanhola e de
outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios
a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão.
A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia.
A epidemia de utopias fala
coisas como: vamos respeitar mais os mais humildes. Seremos mais solidários – durante
a epidemia, muitos, sim, com certeza, ainda bem, mas passada a peste, a maioria
voltará a ser como sempre foi. Os humanistas de quarentena voltarão a fazer lives
dos hotéis caros que frequentam. Seremos menos consumistas? Vida mais simples?
Como assim? Se até pra escolher comida somos o povo mais chato da história. Um
estoicismo gourmet?
O mundo estará mais pobre,
provavelmente. Os pobres mais pobres, menos dinheiro circulando. A economia
será uma ciência ainda mais triste. Isso dará um baque no debate Keynes x
Hayek, em favor do primeiro, grosso modo. Mais gasto do Estado – já está
acontecendo. Passaremos por um momento parecido com a reconstrução da economia
da Europa pós-Segunda Guerra: foco em diminuição de tensões sociais, com razão.
O Estado de bem-estar social nasceu desse foco.
O mundo será mais competitivo
ainda, porque mais inseguro. Mecanismos de controle invasivo valorizados agora
por tanta gente bacana poderão ganhar ares de maior segurança social e de
saúde. A segurança dará de 7 x 1 na liberdade.
O mundo será mais remoto.
Mundo remoto é mundo de solitários. As relações entre as pessoas já estão
difíceis, agora o serão com as bênçãos dos coronials.
Encaremos os fatos: no Brasil só classe média alta e
alta podem fazer quarentena. Só eles têm reserva financeira. A esmagadora
maioria da população vai pedir esmola, seja do Estado, seja nas ruas. A pobreza
no Brasil faz da quarentena uma tendência de comportamento dos ricos e famosos.
Perguntar por que os pobres não fazem quarentena é perguntar por que eles não
comem bolo, já que não têm pão.
Título e Texto: Luiz Felipe
Pondé, Gazeta do Povo, 13-4-2020
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-