Nelson Motta - O Estado de
S.Paulo
Está bombando no YouTube e
provocando acessos de gargalhadas e deboches um filme de sete minutos em preto
e branco com o prosaico título Maranhão 66. Aparentemente é um documentário
sobre a posse de José Sarney no governo do Estado (com o apoio do Presidente Castelo Branco), feito por encomenda do eleito.
Mas é assinado por Glauber Rocha.
Com 35 anos, cabelos e bigode
pretos, Sarney discursa para o povo na praça, num estilo de oratória que evoca
Odorico Paraguaçu, mas sem humor, à sério, que o faz ainda mais caricato e
engraçado. Sobre seu palavrório demagógico, Glauber insere imagens da realidade
miserável do Maranhão, cadeias cheias de presos, doentes morrendo em hospitais
imundos, mendigos maltrapilhos pelas ruas, crianças esquálidas e famintas,
enquanto Sarney fala do potencial do babaçu.
Só alguém muito ingênuo, ou
mal-intencionado, poderia imaginar que Glauber Rocha fizesse um filme chapa
branca. Em 1964, com 25 anos, ele tinha se consagrado internacionalmente com
Deus e o Diabo na terra do sol e vivia um momento de grande prestígio, alta criatividade
e absoluto domínio da técnica e da narrativa cinematográfica. E odiava a
ditadura que Sarney apoiava.
Em Maranhão 66, a narrativa se
estrutura na dialética entre as imagens da realidade dramática e a demagogia
caricata do jovem político provinciano que está tirando do poder um velho
coronel - para se tornar ele mesmo o novo coronel.
O filme dentro do filme é
imaginar o susto de Sarney quando o viu. Em vez de filmar uma celebração
vitoriosa, Glauber usou e abusou da vaidade e do patrocínio de Sarney para
fazer um devastador documentário sobre um arquetípico político brasileiro. E
uma pesquisa para Terra em transe, que filmou em seguida e hoje é considerado a
sua obra-prima. Sarney foi a base para o líder populista interpretado por José
Lewgoy, famoso como vilão de chanchadas.
Glauber dizia que o artista
também tem de ser um profeta; mas a sua obrigação é de profetizar, não de que
as suas profecias se realizem. O discurso de Sarney e as imagens de Maranhão 66
são os mesmos do Maranhão 2011, num filme trágico, cômico, e, 46 anos depois,
profético.
Título e Texto: Nelson Motta,
O Estado de S. Paulo, 06-5-2011
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