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Foto: Miguel Figueiredo |
Janer Cristaldo
Há muito a universidade vem absorvendo as deficiências do ensino secundário. O
marco mais significativo ocorreu quando se começou a ensinar português nos
primeiros anos de curso. Quando fiz vestibular – e já lá vai quase meio século
– só entrava na universidade quem tivesse bom domínio do vernáculo. Hoje, a
universidade está despejando fornadas de analfabetos.
E não só a universidade. Ainda há pouco, eu comentava o caso de um professor de
Direito Penal da PUC-SP, mestre e doutorando pela PUC-SP, pós-graduado em
Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, que grafou “mal
vizinho” e “mal pagador”. O analfabetismo já chegou à pós-grad. Em país em que
um presidente se gaba discretamente de sua incultura, nada de espantar.
Nada de espantar também que o Senado tenha aprovado, na noite de ontem, projeto
que reserva metade das vagas nas universidades federais e nas escolas técnicas
do país para alunos que cursaram todo o ensino médio em colégios públicos. Não
bastasse o ensino superior ter passado a discriminar conforme a cor do aluno,
agora os senadores estão empurrando para o ensino superior as deficiências do
ensino público. Estudar em boa escola virou desvantagem. O preço é ser
preterido no vestíbulo da academia.
O projeto também segue agora para sanção presidencial. Na prática, ele mais do
que dobra o total de vagas destinadas a cotas nas federais.O texto ainda prevê
que as cotas devem ser prioritariamente ocupadas por negros, pardos ou índios.
A divisão deve considerar o tamanho de cada uma dessas populações no Estado,
segundo o censo mais recente do IBGE. Se houver sobra de vagas, elas irão para
os demais alunos das escolas públicas.
Quanto ao mérito, esforço pessoal, cultura, estes critérios estão mortos e bem
sepultados. Se você quer vencer na vida, seja incompetente. Do jeito como vão
as coisas, quem souber flexionar corretamente um verbo ou distinguir adjetivo
de advérbio, ainda será considerado uma sumidade das letras.
Se alguém acha que estou deplorando estes novos tempos, em muito se engana.
Houve época em que eu não só torcia por um país melhor, como até lutava por
isso. Há muito desisti. Sou hoje um mero observador. Se o povo elege medíocres
que elaboram tais leis, é porque este povinho merece. Me reservo apenas o
direito de ser culto e a esperança de que isto, em futuro próximo, não seja
tipificado como crime. Só peço um tempinho para morrer antes. Os senhores
legisladores não perderão muito por esperar. Não é para amanhã, mas também não
farei os responsáveis pelos rumos do país esperar muito.
Ontem foi dia aziago para quem esperava melhores manhãs. Pois o mesmo Senado
também aprovou, por 60 votos a favor e 4 contrários, o segundo turno da
proposta de emenda constitucional que torna obrigatória a obtenção do diploma
de curso superior de jornalismo para o exercício da profissão. O texto terá
ainda de ser votado na Câmara dos Deputados, onde tramita uma proposta
semelhante. E é claro que será mais uma vez aprovado.
Se alguém ainda não lembra, até 1969 era jornalista não quem tinha diploma, mas
aptidão para o ofício. Como ocorre em todos os países do Ocidente. A
conspiração contra o jornalismo vem de longe. Começou com a junta militar da
ditadura – cujos nomes hoje ninguém lembra, mas passou à História como Junta
dos Três Patetas – que instituiu a exigência de diploma. É curioso ver como as
esquerdas, tão hostis ao regime militar, assumiram de corpo e alma esta medida
ditatorial.
Em 81, ao voltar de Paris, fui entrevistado por um jornalista da rádio
Universidade, de Porto Alegre. Perguntou-me como era a condição legal do jornalista
na França. Por acaso, eu tinha no bolso uma agenda francesa destinada a
jornalistas, que trazia o texto legal. Segundo o artigo L 761-2 do código do
trabalho, “le journaliste professionnel
est celui qui a pour occupation principale, régulière et rétribuée l'exercice
de sa profession dans une ou plusieurs publications quotidiennes ou périodiques
ou dans une ou plusieurs agences de presse et qui en tire le principal de ses
ressources."
Traduzindo: jornalista profissional é aquele que tem por ocupação principal,
regular e retribuída o exercício de sua profissão em uma ou várias publicações
cotidianas ou periódicas ou em uma ou várias agências de imprensa e que
disto tira o principal de seus recursos. E estamos conversados. (O grifo é
meu).
Melhor tivesse ficado calado. O foquinha à minha frente encerrou incontinenti a
entrevista. Eu havia dito o que ninguém queria ouvir. A exigência de diploma
favorece uma guilda poderosa de analfabetos muito bem pagos, integrada por
incompetentes que jamais pisaram em uma redação de jornal mas se julgam capazes
de ensinar o que se faz em uma redação de jornal.
Me considero jornalista competente, não por acaso fui chamado a trabalhar nos
dois mais importantes jornais do país. Nunca tive curso de jornalismo. O básico
do ofício aprendi em seis meses de redação. Nenhum curso universitário supre o
que se aprende em seis meses de redação. Sem falar que redigir é o mínimo que
se pede de um jornalista. O que se pede, fundamentalmente, é domínio de sua
área e isto nenhum curso oferece. Que pode escrever sobre economia ou ciências
um novato que jamais estudou economia ou ciências?
Só vai escrever bobagem, é claro. Exemplo emblemático disto, que gosto de
repetir, aconteceu em 1983, quando a Veja endossou como verdade
científica uma brincadeira lançada pela revista inglesa New Science.
Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da
fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria
de ciências visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com
um pé atrás. Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia
“sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de
tomate. E abre uma nova fronteira científica".
Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada:
os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as
cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de
Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser
cotejada com hambúrguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma
prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na
piada. O jornalista responsável pela barriga foi promovido a editor da revista.
Em 2009, o Supremo Tribunal Federal decidira que a exigência do diploma,
imposta no regime militar, atentava contra a liberdade de expressão. Em vão. A
guilda insistiu na proteção dos seus e agora temos algo insólito no Direito
Constitucional, uma profissão regulamentada pela Constituição.
O senador Aloysio Nunes lembrou que se a emenda for aprovada pelos deputados, a
profissão de jornalista será a única a constar na Constituição. "Existem
médicos, advogados e outros profissionais que são bons jornalistas, sem a
necessidade de ter um diploma específico. Será uma aberração colocar a
profissão de jornalista na Constituição por razões meramente corporativas, para
atender ao sindicalismo dos jornalistas, que é o mesmo que trabalha pelo
controle social da mídia".
Para o senador, a proposta interessa sobretudo aos donos de faculdades privadas
ruins, "arapucas que não ensinam nada e que vende a ilusão de um futuro
profissional. Não há interesse público envolvido nisso, pelo contrário, a
profissão de jornalismo diz respeito diretamente à liberdade de expressão do
pensamento, de modo que não pode estar sujeita a nenhum tipo de exigência legal
e nem mesmo constitucional".
É voz que clama no deserto. O projeto obviamente será aprovado pelos deputados.
Político não gosta de seres pensantes e, pior que tudo, independentes. O Brasil
será, definitivamente, um dos raros países do mundo (os outros são ditaduras
árabes ou ex-socialistas) a ter o diploma como conditio sine qua non do
exercício da profissão.
E assim vai meu amado país, em ritmo de ganso: um passo e uma cagada.
Título e Texto: Janer
Cristaldo, http://cristaldo.blogspot.pt/
Colaboração: Rafael Picate
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