Hoje fala-se muito mais de
pobreza do que antes, o que é normal, dada a crise. Além disso, nestes tempos
difíceis Portugal tem brilhado em solidariedade e entreajuda. Mas as duas
coisas estão bastante desligadas. A caridade, em geral discreta, pouco tem que
ver com o que se diz da pobreza.
Primeiro, porque quem fala
sobre miséria costuma estar zangado. Isso até é compreensível, mas a irritação,
mesmo bem-intencionada, gera exageros, discórdias, perda de objectividade, o
que é lamentável em problema tão grave. Segundo, a quase totalidade dos que elaboram sobre pobreza não são pobres.
Também isso é natural, pois os verdadeiros necessitados, por o serem, não têm
voz ou influência. Captar auditório é, em si mesmo, um importante activo, que
falta aos indigentes. Por isso, aqueles que ouvimos falam de algo que de facto
não experimentaram, e em geral mal viram.
Talvez o aspecto mais
inesperado seja que, no fundo, as recentes conversas sobre pobreza tratem de
outro assunto. Porque o tema delas é quase sempre político. Sem duvidar da
integridade e da boa intenção do orador, temos de dizer que a finalidade imediata da retórica não é
aliviar os pobres mas atacar o neoliberalismo, rejeitar a troika, derrubar o
Governo, combater a reforma do Estado, o Orçamento ou outro decreto particular.
A miséria serve de pano de fundo para manifestos doutrinais.
Este facto é muito
desconcertante, por duas razões. Primeiro porque as medidas do Governo têm
trazido sempre ressalvas nos rendimentos mais baixos. Como explicar então que,
apesar disso, tantos protestem em nome deles? Mas a suprema estranheza advém de
os defensores dos pobres se virarem para o Estado, que todos sabem ser há
séculos um inimigo dos miseráveis.
Reis, imperadores e
governantes nunca se interessaram pelos desgraçados, quando não os perseguiam.
O poder não gosta dos pobres e estes confiam mais na ajuda do próximo que nas
promessas dos chefes. Há muito que é a Igreja, não o Governo, a tratar dos
necessitados. As coisas parecem diferentes na moderna democracria assistencialista,
mas um velho princípio económico mostra a ingenuidade dessa ilusão.
Foi em 1970 que o prémio Nobel
George Stigler (1911-1991) formulou, num dos seus textos clássicos, a lei que
atribuiu ao colega da Universidade de Chicago Aaron Director (1901-2004):
"Director"s Law of Public Income Redistribution" (Journal of Law
and Economics, Vol. 13, n.º 1, p. 1-10). Esse teorema afirma que "as
despesas públicas são feitas para o benefício primordial da classe média, e
financiadas com impostos suportados em parte considerável pelos pobres e pelos
ricos" (op. cit. p. 1). A sua base lógica advém naturalmente de,
representando de longe a maior parte da sociedade, as classes médias atraírem
naturalmente as graças dos eleitos.
Hoje Portugal, devido às
imposições da troika, vive um corolário desta lei em condições inversas. Como
nas décadas de endividamento os benefícios seguiram esse princípio,
dirigindo-se para os extractos intermédios, agora é aí que cai o corte nas
despesas. Aliás, a verdadeira razão da raiva extrema contra o Governo vem da
pressão sobre a classe média, uma violação forçada da "lei de
Director".
Assim se explicam as confusões
dos discursos sobre pobreza. A maioria dos que falam em nome dos desprovidos
estão realmente a defender as classes acima, mesmo se nos extractos mais
baixos. As medidas contestadas não tocam os verdadeiros pobres, geralmente
alheios aos políticos, até de esquerda. As greves dos serviços públicos não se
destinam a proteger os desvalidos, que aliás são os que mais sofrem pela falta
de transporte e outros sistemas. Em Portugal não há manifestações de mendigos,
miseráveis e necessitados. São antes os remediados, que se consideram carentes,
que fazem as exigências em nome dos silenciosos.
Boa parte da retórica de
constestação baseia-se neste mal-entendido, em que burgueses passam por
infelizes. Entretanto, os verdadeiros desgraçados, mudos como sempre, ainda têm
de ouvir os muitos aproveitamentos do seu nome.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 04-11-2013
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