Apesar de tanta gente antecipar a violência popular, o país parece ter
descoberto uma sabedoria dos tempos difíceis
Se os tempos fossem outros, o
“encontro das esquerdas” promovido ontem por Mário Soares na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa
teria sido convocado para um espaço bem mais amplo.
Se os tempos fossem outros, a
criação de um novo partido que afirma a ambição de federar as esquerdas não
teria decorrido numa sala meio vazia de um cinema de Lisboa. Se os tempos
fossem outros, os quase 500 dias de protestos e greves no sector público de
transportes já teriam desembocado em múltiplas greves gerais capazes de
paralisarem o país e não de ficarem quase só pelas empresas e pelos
funcionários do Estado.
Mas então por que é que os
tempos não são outros? A acreditar nas previsões dos mais avisados políticos e
dos mais ponderados senadores, o país devia estar a ferro e fogo. Pessoas
aparentemente tão diferentes como Mário Soares – que há mais de um ano escreve
sobre “a violência que aí vem” e esta quarta-feira anunciou que “os portugueses
não iam ficar parados” – ou Januário Torgal Ferreira – que entendeu que a
melhor forma de criticar o Governo era chamar-lhe “profundamente corrupto” –
convergem numa mesma inquietação: o povo está muito parado, muito apático.
Talvez por isso, como se cantava noutros tempos, o que seja preciso “é agitar a
malta”.
Por outro lado, se olharmos
para uma banca de jornais ou nos sentarmos para ouvir um telejornal, o rol de
desgraças e malfeitorias é tão interminável que se entende a incompreensão de
tantos dos nossos opinadores por os tempos não serem outros. Num país onde tudo
é sempre apresentado como mais um cataclismo social, custa a entender por que
não surgiu ainda uma moderna Carbonária.
Não sei, ninguém sabe, se o nosso país vai conseguir atravessar estes dias difíceis sem episódios com a gravidade de alguns que já ocorreram noutros países. Nunca se está livre de um episódio, que até pode ser isolado – como foram, esta semana, os tiroteios em Paris –, atear tempestades maiores. Mas julgo sinceramente que não é o cenário mais provável. Mais: isso não decorrerá dos nossos míticos “bons costumes”, antes de existir a percepção, mesmo que difusa e poucas vezes assumida, de que houve um tempo de fartura (relativa) que passou e que agora há um tempo de contenção que durará vários anos e vários governos.
Não sei, ninguém sabe, se o nosso país vai conseguir atravessar estes dias difíceis sem episódios com a gravidade de alguns que já ocorreram noutros países. Nunca se está livre de um episódio, que até pode ser isolado – como foram, esta semana, os tiroteios em Paris –, atear tempestades maiores. Mas julgo sinceramente que não é o cenário mais provável. Mais: isso não decorrerá dos nossos míticos “bons costumes”, antes de existir a percepção, mesmo que difusa e poucas vezes assumida, de que houve um tempo de fartura (relativa) que passou e que agora há um tempo de contenção que durará vários anos e vários governos.
Recentemente, a propósito da
fraca afluência à que deveria ter sido a terceira grande manifestação do
movimento Que Se Lixe a Troika, não
faltou quem culpasse o medo pela ausência das esperadas multidões. Mas medo de
quê? Medo do Governo? Não faz sentido. Medo de perder o emprego? Mas quem o
perderia por desfilar a um sábado, dia de descanso? Medo do futuro? Sem dúvida.
Mas não deveria esse medo do futuro convocar ainda mais manifestantes?
Talvez seja esta última
interrogação a mais pertinente. Se há medo do futuro, há talvez ainda mais medo
das alternativas aos dias que correm. Até pelo que elas omitem. Tomemos um caso
desta semana. Mário Soares entendeu que era chegado o momento não apenas de
pedir a demissão do Governo, como a saída do Presidente da República. Não faço
ideia, e julgo que ninguém fará, como quereria que se gerisse depois o longo
interregno, que duraria muitos meses, de incerteza política e caos
institucional. Com um primeiro-ministro tecnocrata? Com um Presidente designado
pelas Forças Armadas? E quem negociaria com a troika? Os partidos, cada um por
si? E seria que o PS devia ficar de fora, para não legitimar nada? E como iria
Portugal conseguir os mais de 20 mil milhões de euros de que necessita para
financiar o défice de 2014 e pagar os empréstimos que vencem ao longo do
próximo ano? Incumpria, declarando bancarrota?
Ao mesmo tempo, o PS, apesar
de alguns esforços para formular uma política mais coerente e de algumas
tiradas sobre “responsabilidade orçamental”, praticamente só apresentou na
Assembleia propostas de alteração ao Orçamento que fariam aumentar o défice de
2014. É simpático, mas não é suficientemente sólido para que António José
Seguro seja levado a sério.
Faço parte dos que sentem –
dos que sabem – que “não há dinheiro”, mas já não sou dos que defendem que não
há alternativa. Alternativas há sempre, é preciso é saber se são melhores. O
que me custa ver em Portugal é pouca gente assumir que todas as alternativas
têm também os seus custos. Podemos, por exemplo, defender que há cortes nas
despesas do Estado que são intoleráveis – mas então devemos também dizer como
fazemos crescer as suas receitas, e não vale falar das quimeras do crescimento
económico, pois esse quase desapareceu desde a viragem do milénio e não
regressará apenas pondo o Estado a gastar mais dinheiro. Depois de ter comprado
tantas ilusões durante tantos anos e tantos ciclos eleitorais, o povo quer
mais, não se satisfaz apenas com propostas de acabar com a austeridade – porque
não acredita nelas.
Mais do que o medo ou a
desconfiança face às alternativas, julgo que a razão principal para a “apatia”
que tanto inquieta uma parte dos nossos intelectuais está na consciência de que
alguma forma de austeridade – ou de contenção e poupança, se preferirmos as
palavras que os alemães usam quando se referem a austeridade – fará parte do
nosso destino nos próximos anos.
A forma como os portugueses
têm vindo a alterar os seus padrões de consumo ajuda-nos a perceber este novo
estado de espírito. Um estudo de mercado muito alargado elaborado no final do
ano passado indicava, por exemplo, que havia entre os consumidores aquilo a que
os especialistas chamaram um novo “frugalismo”. Não se abdica apenas do que não
se tem dinheiro para comprar, abdica-se do que se pensa que é supérfluo. Isso
acontece tanto nas escolhas feitas nas prateleiras de um hipermercado como no
recurso a mercados de bens em segunda mão (como nos sites de leilões). E não
corresponde apenas a uma alteração de comportamento, corresponde também a uma
nova atitude anticonsumista que é verbalizada nas entrevistas. Isto significa
que tais alterações de comportamento não são tão sofridas como se deduziria
apenas da leitura muitas vezes alarmista da imprensa e dos fazedores de
opinião.
Outro aspecto importante é a
forma como os sacrifícios são percepcionados. Por exemplo: fala-se sempre de
“cortes nas pensões”, nunca se refere que a maioria esmagadora das pensões não
sofreu até hoje nenhum corte pela razão simples de que são demasiado baixas.
Outro exemplo: apresenta-se como uma catástrofe social os cortes a partir de
700 euros na administração pública (cortes que também eu lamento profundamente
começarem nesse nível salarial), mas esquece-se que metade dos salários no
sector privado é inferior a 650 euros, o que significa que esses trabalhadores
não se chocam tanto como as elites com os cortes acima dessa fasquia. Mais: até
são capazes de achar que assim se repõe alguma equidade.
Como dizia o Herman José, “a
vida dos pobrezinhos é um mistério”, e neste país há muito mais rendimentos
realmente baixos do que aquilo que a alta classe média imagina. Essa distância
ajuda a perceber por que tantos não entendem por que é que o povo ainda não
encontrou uma nova Maria da Fonte. Essa distância e a percepção da maioria que,
mesmo sendo estes dias difíceis, há alguma coisa que pode perder (o apartamento
nos subúrbios, o carro em terceira mão). Ao contrário dos mitológicos
proletários de Marx, que só tinham a perder as suas cadeias…
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Público,
22-11-2013
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O José Manuel Fernandes escreve muito bonito mas infelizmente diz pouco, então quando cita o Herman José borra mais a pintura ainda!! Tipo do jornalista de direita que anda às curvas!
ResponderExcluirCarlos Kennedy
Os jornalistas de esquerda é que são bons: andam em linha reta!
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