Miguel Tamen
O chamado exercício da
cidadania, que adquiriu a reputação de proporcionar a santidade, é quase uma
variedade de exercício físico: provoca ansiedade, boa consciência e dores nas
articulações.
A maior parte das pessoas
trata os seus direitos como um turista em pensão completa trata o seu hotel. Há
que aproveitar tudo o que lá está: não deixar um camarão por comer, um sabonete
por usar, e uma toalha por levar. A isso chama-se, em linguagem corrente,
exercer direitos. Tal como ao turista parece pena deixar por usar qualquer das
coisas que já pagou, assim parece pena não se exercer os direitos adquiridos.
Para estas pessoas uma vida em cheio é uma vida passada a exercer direitos.
Haverá outras maneiras
melhores de imaginar os nossos direitos, e já agora de passar a vida? A alguns
ocorre a ideia da apólice de seguros. Esta ideia partilha com a ideia do hotel
a noção de que direitos são coisas que adquirimos e exercemos. Ao contrário
dela, porém, direitos são também coisas de que normalmente não nos lembramos.
Tal como quem sabe que tem um seguro de incêndio, quem sabe que tem direitos
não passa a vida a lembrar-se deles.
A teoria-hotel é primitiva,
mas não refrescante. Para ter uma vida em cheio as pessoas têm de passar a vida
a fazer aquilo a que têm direito. O chamado exercício da cidadania, que
adquiriu a reputação de proporcionar a santidade e que faz adivinhar milícias,
é nesta perspectiva quase uma variedade de exercício físico; faz mal como o
exercício físico: provoca ansiedade, boa-consciência, e dores nas articulações.
A teoria-apólice é a teoria
que as pessoas mais sofisticadas preferem. Tem no entanto um problema que toda
a gente que tem seguros conhece bem: em que circunstâncias vale a pena accionar
a nossa apólice? Tais circunstâncias exigem cálculo e ponderação, sobretudo
porque sabemos que o prémio sobe quanto mais uso dermos à apólice. A teoria
exige por isso que se compare sempre aquilo que está a acontecer com aquilo que
pode vir a acontecer. Se um monstro japonês triturar e destruir a minha casa
numa nuvem de fogo, não tenho dúvidas de que na manhã seguinte estarei a falar
com a companhia de seguros. Mas valerá a pena falar com ela se a minha
fritadeira tiver chamuscado a chaminé da cozinha?
Dito de outra forma, o
problema principal dos direitos não é tê-los; esse problema está sempre
resolvido por definição: temos os direitos que temos (uma outra discussão,
diferente, é saber se devemos ter direitos que não temos). O verdadeiro
problema é quem os tem saber quando vale a pena exercê-los. A única definição
razoável de ‘exercício da cidadania’ é: saber quando vale a pena exercer os
nossos direitos. A tarefa não é heróica; implica atenção às circunstâncias, e a
consciência intermitente de que nem sempre nos convém fazer aquilo que temos o
direito de fazer. É muito bom ter direitos; mas melhor ainda é não ter de os
exercer.
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