Rui Ramos
Catarina Martins não quer ver
"reconhecida" a "enorme violência da expansão portuguesa",
quer apenas usar a história para deslegitimar os regimes ocidentais – e só
esses.
Enquanto o presidente da
república, em Boston, declarava Portugal capaz, como nenhum outro país,
de “compreender, de dialogar, de aproximar pessoas”, por cá,
Catarina Martins [foto] revoltava-se, muito indignada por os “discursos
oficiais” não terem “reconhecido a enorme violência da expansão portuguesa, a nossa história escravagista”.
Que dizer? O 10 de Junho deveria ser um dia de vergonha e de penitência
nacional – não o dia de Portugal, mas o dia contra Portugal?
Nada disto é novo. Se a
memória não me está a trair, lembro-me de a RTP, em 1974, transmitir um esforço
artístico progressista em que os personagens repetiam monotonamente “Diogo é
cão, Diogo é cão”. Com as colónias de África em vias de serem trespassados a
novas ditaduras, nada mais conveniente do que tratar a expansão portuguesa como
uma nódoa para ser lavada rapidamente. A história da expansão entrou então de
quarentena. Não por muito tempo, porque a democracia não arranjou mais nada com
que tornar Portugal interessante para audiências internacionais (não é
certamente com a história do imposto de selo), e a “globalização” valorizou novamente
a origem das conexões entre os continentes.
Foi assim que, na década de
90, muitos dos atuais indignados com os Descobrimentos colaboraram, então sem
indignação, com a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos
Portugueses. Portugal foi nesses anos o “pioneiro da globalização”. Nos
últimos tempos, tudo mudou outra vez, quando a “internacionalização” das
ciências sociais submeteu a investigação portuguesa à agenda racialista das
universidades americanas. De repente, os mesmos que só viam na expansão
portuguesa “multiculturalismo” e “encontro com o outro” descobriram que,
afinal, tudo foi racismo e exploração, e que é preciso “reconhecê-lo”.
Digamos que é uma exigência
bizarra, na medida em que nem as fontes clássicas – lembrem-se de Gil Vicente
ou de Fernão Mendes Pinto – escamotearam a violência das “descobertas e
conquistas” (como se dizia). Sobre a escravidão, nunca houve silêncio. Mas não é a história, com as suas
complexidades, que importa a Catarina Martins, mas apenas o uso de uma
história caricaturalmente simplificada para deslegitimar os regimes ocidentais,
e só esses.
O chamado “anticolonialismo”
não é, por isso, uma ruptura com o colonialismo: é apenas a sua última fase, no
sentido em que continua o velho etnocentrismo que um dia exaltou o “homem
branco” como o agente da civilização, e agora o trata como o responsável por
todo o mal do mundo. A expansão moderna, porém, não foi uma simples história
europeia – pensar assim, é precisamente o primeiro erro etnocêntrico. Muitas
das sociedades locais com que os portugueses se “encontraram” não eram
compostas de nativos sossegados num idílio à Rousseau, mas impérios militares,
também eles em expansão, com os seus escravos e as suas violências.
Os portugueses escravizaram,
mas — em menor escala — também foram escravizados, por exemplo pelos piratas argelinos que atacaram as costas portuguesas até ao século XVIII.
Os Otomanos cativaram imensa gente na Europa e, em
conjunto com os árabes, terão tirado tantos escravos de África como os
europeus. O que verdadeiramente distinguiu os europeus nesta história não foi
apenas o uso de escravos na agricultura da América colonial, mas terem sido os
primeiros a abolir a escravidão. A Arábia Saudita só a ilegalizou em 1962, o
Omã em 1970 e a Mauritânia em 1980. Talvez os portugueses não tivessem feito o
mundo melhor, mas também não o fizeram pior.
Catarina Martins parece muito
infeliz por o passado não ser igual ao presente. Não foi, de facto.
A essa diferença, chama-se
“história”. E para a compreender, não há caminho pior do que o simplismo das
glorificações e das criminalizações com pequenos fins políticos.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
12-6-2018
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