Sérgio Barreto Costa
Ao contrário dos nazis, que,
inspirados numa peça de teatro do dramaturgo Hanns Johst, sacavam da pistola
quando ouviam a palavra Cultura, eu gostaria apenas, em iguais circunstâncias,
de sacar do polígrafo. Não é que a mentira, democrática como é, não atinja também
outras áreas da governação, mas nesta em particular, fossem os atuais
responsáveis políticos da família do Pinóquio, e já teriam caído para a frente
com o peso do nariz.
Em 2015, último ano em que os rústicos liderados por Passos Coelho
trataram do assunto, o orçamento destinado à cultura era de uns míseros 219 milhões de euros; em 2016, afastados os bárbaros dos salões
da civilização, logo o orçamento passou para uns generosos… 179 milhões!
À primeira vista parece uma
diminuição, mas as “primeiras vistas” são para saloios e António Costa é um
príncipe florentino. Num passe de mágica pegou na RTP e nos 244 milhões que lhe
estavam destinados, e toca a metê-los no Ministério da Cultura, elevando o
orçamento global, em microssegundos, para uns espetaculares 423 milhões de
euros.
Desde o dia em que Marcel
Duchamp comprou um vulgar urinol numa loja de Nova Iorque e o rebatizou como
obra de arte que ninguém fazia cultura de uma forma tão rápida, o que diz bem
da qualidade do artista. É também provável que, sem contar com Alves dos Reis,
seja o português que mais dinheiro conseguiu criar a partir do nada, o que só
reforça a conclusão anterior.
É, pois, perfeitamente natural
que, cumprido com sucesso o primeiro truque da multiplicação do orçamento,
António Costa avance com naturalidade para novos ilusionismos. Em Guadalajara,
questionado sobre o famoso 1% do PIB que é reivindicado pelo PCP, pelo Bloco de
Esquerda e pelos agentes culturais, puxou da “transversalidade do que são as
verbas dedicadas à cultura” para garantir que, em 2019, o assunto ficaria
resolvido. Se fosse apenas pelo PCP e pelo Bloco, que aprovam os atuais
orçamentos na Assembleia da República e sabem muito bem o que se passa, não
valia a pena gastar o meu latim. Mas pelos agentes culturais eu sou capaz de
tudo, incluindo traduções de frases artísticas.
A invocada “transversalidade
das verbas”, prova viva de um investimento extraordinário na iluminação do
povo, significa que o primeiro-ministro se prepara para pescar em todos os
ministérios as rubricas que estejam de alguma forma relacionadas com a cultura
e fazer com elas uma bonita conta de somar. O ensino artístico (Ministério da
Educação) e o Instituto Camões (Ministério dos Negócios Estrangeiros) são dois
bons candidatos a inaugurar o processo, mas com o tempo e com a adopção do
conceito alargado de cultura utilizado pelos antropólogos, não será de
estranhar que o orçamento do sector atinja em breve os vinte ou trinta por
cento do PIB. Agostinho da Silva, por exemplo, dizia que a cultura era a soma
de três S – sustento, saber e saúde, pelo que só nesta frase temos uma grande
margem de progressão.
E há também todo aquele
conjunto de características definidoras de um povo e que pode ser muito útil na
reclassificação financeira em curso. Para não me acusarem de má vontade, até
deixo umas sugestões: se a fuga ao fisco faz parte da cultura dos portugueses,
o salário dos inspetores das finanças deverá ser contabilizado no orçamento de
Graça Fonseca; e se estacionar em cima do passeio pode ter o mesmo enquadramento
antropológico, o orçamento da EMEL deverá ter o mesmo destino.
Claro que tudo isto só tem
lógica num cenário de acumulação, nunca de substituição: o ensino artístico,
por exemplo, será uma verba da cultura nos debates relacionados com o ministério
sediado no Palácio da Ajuda; quando o tema for a educação, volta para o
ministério de Tiago Brandão Rodrigues. Com uma boa dose de agilidade, o mesmo
dinheiro poderá servir como prova da paixão governativa por múltiplas e
diversas áreas. Assim o permita a imaginação e a lata.
Pessoalmente, não ligo nada à
famosa “questão do 1%”. É uma percentagem como outra qualquer, que serve mais
de fétiche retórico do que de espelho da situação cultural de
um país. No entanto, para não continuarmos a alimentar a comédia de enganos,
ficam aqui os números: a verba de 2019 para a cultura, limpa do passe de mágica
da RTP e da treta da “transversalidade”, representa 0,32% do Orçamento de
Estado e 0,12% do PIB, nem mais nem menos.
Como já disse, não ligo nada
ao 1%. Mas, como há muitos portugueses que ligam, talvez seja boa ideia não os
fazer de palhaços. Apesar do circo ser, justa e naturalmente, cultura.
Título, Imagem e Texto: Sérgio Barreto Costa, Blasfémias,
5-12-2108
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