sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Porque é que me recuso a atacar a mulher que meteu o filho no lixo

Ela cometeu um crime hediondo. No entanto, pode não ser uma pessoa hedionda. Pode ter sido levada ao limite.

Marta Gonçalves Miranda

Não há qualquer dúvida de que o crime cometido pela mulher de 22 anos, agora detida, foi hediondo. Começo por frisar isto muito bem porque sei que haverá sempre alguém neste mundo a achar que eu concordo com o que ela fez. Não concordo que se faça isto aos animais, quanto mais a um bebé. O crime que ela cometeu — porque é essa a palavra certa, crime — é hediondo, os indícios de prática de homicídio qualificado são fortes e é absolutamente dramático que isto tenha acontecido.

Fiquei tão chocada como qualquer outra pessoa com as notícias que saíram sobre este tema. Uma mulher de 22 anos deu à luz e enfiou o filho, ainda com restos do cordão umbilical, dentro de um ecoponto. A criança só sobreviveu porque um homem a ouviu chorar. Não tinha uma única peça de roupa, foi abandonado para morrer.

O INEM divulgou nesta quarta-feira uma imagem do momento em que o bebé é socorrido. Foto: Instagram INEM

Não consigo sequer imaginar o que sentirá esta criança no dia em que souber que a mãe, aquela que lhe deu vida, pegou no seu frágil corpo e o meteu no lixo. Não o deixou à porta de um hospital, numa corporação de bombeiros, nada. Meteu-o no lixo, na esperança que morresse e o seu sufoco por ter um filho, seja ele qual fosse, terminasse. O sentimento de rejeição pode vir a ser avassalador um dia. Não consigo sequer pensar como é que ele vai lidar com isso para o resto da vida.

Esta mulher de 22 anos cometeu um crime. Mas na era das redes sociais, somos tão rápidos a julgar e a criticar o outro que nos esquecemos que o mundo não é a preto e branco. Era fácil se assim fosse, mas não é — e as pessoas em particular não podem ser categorizadas dessa maneira porque, infelizmente, somos demasiado complexos para isso.

Ela cometeu um crime, sem dúvida. Só que eu recuso-me a chamar-lhe monstro. Cometeu um ato monstruoso? Sim. É um monstro? Não sei. Não faço a menor ideia, e vocês também não. Não fazemos a menor ideia do que passava na sua mente no momento em que deu à luz. Ainda sabemos tão pouco sobre ela — as últimas notícias dão conta de que era sem-abrigo e que sempre negou a gravidez, dizendo que eram problemas no intestino. É pouco, é demasiado pouco para partirmos para a condenação em praça pública.

Somos todos ótimas pessoas atrás de um computador. O problema é quando a vida nos leva ao limite e cometemos atos monstruosos, daqueles que nunca julgamos ser capazes de cometer. Eu não me consigo imaginar a meter um filho no lixo, claro que não. Mas recuso-me a atirar esta mulher para a fogueira antes de saber em que condições psicológicas se encontrava. Ela pode ser um monstro. Ou pode ser uma mulher altamente perturbada que precisa de ajuda.

Este ponto deixou muita gente revoltada na página de Facebook da MAGG esta semana. A jornalista Filipa Novais falou com uma psicóloga para tentar perceber o que leva um indivíduo a livrar-se de um filho assim — na altura ainda não se sabia que tinha sido uma mulher, mas a especialista referiu condições específicas do sexo feminino que poderiam levar a que isto acontecesse.

“A maior parte das vezes isto não acontece por um ato de maldade”, disse à MAGG a psicóloga Júlia Machado. “A maioria das mulheres que cometem este ato encontram-se uma situação de medo ou de pânico”. Estão a atravessar um período de grande dor emocional, podem não conseguir aceitar a gravidez por ser fruto de uma violação, podem estar em depressão profunda.
Júlia Machado sabe que o mundo não se divide em pessoas más e pessoas boas — excelentes pessoas podem cometer atos horríveis, da mesma forma que pessoas más podem protagonizar atos de puro altruísmo. Só que atrás desta caixinha mágica, somos todos superiores, somos todos magnânimos e somos todos juízes.

“Nem os animais abandonam as crias”, disseram muitos leitores. Em primeiro lugar, isso não é verdade — é de conhecimento geral que muitas espécies abandonam as crias mais fracas. Mas não vou perder tempo a explicar isto porque, vá lá, nós não somos animais irracionais, somos seres humanos. Querem discutir se os animais são melhores do que nós? Não vale a pena, concordo convosco. Em muitas situações, são. Mas nós não somos iguais, portanto, não podemos comparar-nos.

Não condenem. Não atirem pedras e condenem à forca esta mulher antes de saberem exatamente o que é que aconteceu. Ela cometeu um crime hediondo, repito. No entanto, pode não ser uma pessoa hedionda. Pode ter sido levada ao limite.
E sim, pode precisar de ajuda.
Título e Texto: Marta Gonçalves Miranda, MAGG, Observador, 8-11-2019

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