Na guerra em que os gregos venceram os troianos, o cavalo estava cheio de soldados. E agora?
Deonísio da Silva
Os leitores já sabem que
Portugal e o Brasil semelham no português o que disse da Inglaterra e dos EUA o
talentoso, feio e bem-humorado dramaturgo britânico Bernard Shaw, um dos
fundadores da famosa London School of Economics, numa das muitas frases jocosas
que lhe são atribuídas: “Dois países separados pela mesma língua”.
É uma de suas frases mais
lembradas, ao lado de outras igualmente citadas com frequência: “Se
você tem uma maçã e eu tenho outra; e nós trocamos as maçãs, então cada um terá
sua maçã. Mas se você tem uma ideia e eu tenho outra, e nós as trocamos, então
cada um terá duas ideias.”
Dele também se conta que uma mulher um tanto néscia e de rara beleza teria dito: “O senhor já pensou se tivéssemos um filho? Teria a sua inteligência e a minha beleza”. E que ele teria replicado: “Mas e se fosse o contrário?”. O último episódio é pouco provável e talvez tenha sido forjado por alguém incapaz de perceber que um inglês espirituoso teria sido mais delicado e sutil.
Certa vez, eu estava em
Lisboa, a queridinha da Europa, destino de tantos brasileiros, queria ir ao
cinema e depois jantar e beber vinho. Tinha acabado de falar sobre o Marquês de
Pombal, personagem solar de meu romance A cidade dos padres. Havia
um enorme cartaz com a cara desconfiada de Gary Oldman. Era 2011 e estreava um
filme intitulado A toupeira. Havia cartazes por todos os lugares.
O cinema jamais perdeu tempo
por recorrer à literatura em busca de temas, personagens e modos de narrar e ao
ler que A toupeira era a adaptação de Tinker Taylor
Soldier Spy (Funileiro Alfaiate Soldado Espião), romance de John Le
Carré, lá fui eu.
No Brasil, o filme e o livro tiveram outro título: O espião que sabia demais. Foi um achado do tradutor Thomaz Scott Newland Neto, uma vez que prevalece no português do Brasil o significado de pessoa estúpida para toupeira. E no caso do título português, toupeira foi utilizado na sexta acepção das oito que lhe dá um dos mais prestigiosos dicionários, o da Porto Editora: “pessoa infiltrada em grupo ou organização que age ao serviço de outros; espião, conspirador”.
Em latim, esses animais
roedores foram classificados como “talpus” e “talpidae”, designação mantida
pelo cientista sueco mais conhecido por seu nome em latim: Carolus Linnaeus.
Até o Século XVII todos os cientistas escreviam em latim, era esta a língua que
cumpria o lugar do inglês atualmente, como já foi o francês. Seu nome sueco era
Carl Nilson Linnaeus, mas foi nobilitado para Carl von Linné. Portugal e o
Brasil também praticavam esse tipo de ascensão social, tornando nobres por
títulos aqueles que não o eram territorialmente, como explica Raimundo Faoro em
sua obra de referência Os donos do poder. No fim e ao cabo, a aristocracia
rica, acabou por permanecer até depois da Revolução Russa de 1917, é só dar uma
olhada na situação por lá e comprovar com George Orwell que no socialismo uns
são mais iguais do que outros.
A ciência
Eram muitos os méritos de
Lineu, que, além de botânico e zoólogo, tinha também dotes literários. Goethe
reconheceu ter sido muito influenciado por Lineu. Mas este é outro assunto, a
não ser, é claro, para lembrar o quanto esses temas são atuais no Brasil, onde
de repente, saem abaixo-assinados de 1.200 juristas, dos quais conhecemos menos
de dez, e aparecem na mídia todos os dias jornalistas submissos dizendo “a
ciência” e “os cientistas” para designar, respectivamente palpites, que eles
disfarçam como notícias, e palpiteiros, a verdadeira essência daqueles
entrevistados dos quais querem nos impor os parcos saberes como se fossem o
último biscoito do pacote, uns e outros.
Mas não estávamos falando de
toupeiras? Estávamos e continuamos. Publicado em 1974, o livro é destaque na
obra do escritor britânico, professor universitário e diplomata que trabalhou
no MI6, o serviço secreto inglês, cuja sigla quer dizer “Military Inteligence,
section 6”. (Inteligência Militar, seção 6).
Lá pelas tantas, o ator Gary
Oldman, na pele do espião George Smiley, o mais emblemático dos personagens
de Le Carré, diz que o fanático tem um ponto fraco: ele sabe que
está enganado, mas não reconhece isso. O conceito aparece quando Smiley conta a
um colega que um espião russo seu amigo foi torturado por americanos, perdeu as
unhas de todos os dedos e voltou para a URSS com fama de traidor, sabendo que
ao chegar sofreria muito mais e provavelmente acabaria fuzilado.
O capital
É impressionante como filmes e
livros fazem parcerias tidas por improváveis, uns iluminando outros. Cortemos
para poucos anos depois. A partir de 2013, passou a ser um dos livros mais
lidos do mundo O capitalismo do século XXI, obra de economia e
política de quase mil páginas, do francês Thomas Piketty, cuja tese central diz
que o mundo deu uma virada e que o capital rende muito mais do que o trabalho.
Estão ficando incomensuravelmente mais ricos aqueles que vivem de rendimentos
do capital.
Nem sempre foi assim. Desde o
após-guerra até a década de 1980, o crescimento da economia, produzido pelo
trabalho, rendia mais do que o capital. O mundo virou de tal modo, dizia
Piketty em numerosas entrevistas, que pouco mais de 60 pessoas tinham U$ 1,72
trilhão, a mesma quantia que tinham 3,5 bilhões de pessoas, isto é, metade da
humanidade. Este desequilíbrio pode ter ficado ainda mais acentuado depois da
pandemia que sobreveio em 2020. Mas a tese de Thomas Piketty continua
controversa.
É um ambiente propício para
entrar em campo os fanáticos? Em janeiro de 2015, os gregos tornaram vitoriosa
uma coligação de extrema esquerda e com isso colocaram um cavalo de troia em
frente aos portões da zona do euro. Foi um presente de grego. E nas eleições de
Portugal em janeiro de 2022, vencidas pelo Partido Socialista, o Chega, partido
dito de extrema-direita, passou de um deputado para 12, enquanto os blocos de
esquerda despencaram.
Mas quem são e como podem ser caracterizados os fanáticos? Na guerra em que os gregos venceram os troianos, o cavalo estava cheio de soldados. E agora? O que os cavalos de troia dos fanáticos trazem no ventre? Mais perigosos do que o enxerto dos cavalos de troia são os fanáticos. Deus nos livre dos fanáticos, prezados leitores. Eles abdicam de pensar, uma das principais atividades humanas. E agora eles vêm em hordas, precisamos nos acautelar enquanto os sensatos ainda são a maioria. Depois, talvez seja impossível, pois vivemos numa democracia e eles escolherão uns aos outros para nos governar
Título e Texto: Deonísio da
Silva, revista Oeste, 13-2-2022
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