quinta-feira, 12 de setembro de 2024

[Daqui e Dali] O bibliotecário "profeta"

Humberto Pinho da Silva 

Em meados da década sessenta era jovem e adolescente. Tinha pouco mais de quinze anos. Por gosto, acompanhava meu pai para assistir a conferências e colóquios, na "Casa dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto".

Como, por vezes, vinha diretamente da escola, chegava antes do início do evento.

Ficava, então, a cavaquear com o bibliotecário da Casa.

Entre as conferências que assisti, e colóquios coordenados por Óscar Lopes, recordo a magnifica preleção do notável comunicador e cineasta António Lopes Ribeiro, de improviso, sem texto de apoio, versando o tema "O cinema e a sociedade".

Ora, certa ocasião, estando a folhear, distraidamente, um jornal retirado de ampla mesa, o bibliotecário acercou-se de mim.

Queria abordar, o simpático homem, o eterno problema da paz; mas a conversa descambou para a República Popular da China.

Começou por lamentar o salário de miséria que o trabalhador usufruía nesse Pais, principalmente o braçal.

O loquaz homem, de fisionomia sombria, espraiava com ardor, asseverando que poucos receavam essa nação, e até muitos pensavam ajudá-la; mas, segundo ele, em breve a China seria tão poderosa que mandaria no mundo.

Sorrindo, escutava-o, lembrando-me, por analogia, do que lera numa seleta escolar: Andava menino pela orla de lúgubre e densa floresta, quando depara, entorpecida pela friagem, pequena víbora. Condoído, agasalhou-a, aconchegando ao peito. Reanimada pelo calor humano, em vez de agradecer, mordeu o benfeitor, mortalmente.

Mais de meio século se passou sobre essa conversa. Na época, muitos defendiam a obrigação, o dever, de auxiliarem o infeliz povo, mas decorrido tanto tempo verifico que havia carradas de razão para tal preocupação desse bibliotecário.

Título e Texto: Humberto Pinho da Silva, setembro de 2024

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