Carina Bratt
O VENTO chegou tarde nesse começo triste de quase noite. Se fez presente tão ‘molengamente’ que não havia mais roupas no varal, nem as folhas das árvores do meu quintal se mostraram simpáticas para saírem do seu estado de marasmo e dançarem com ele. Chegou esse vento ausente de vida, assim, como quem perdeu o ônibus, como quem não tinha dinheiro para solicitar um Uber. O danado esqueceu até do aniversário de um alguém importante que morava casas abaixo da minha. Um alguém? Quem? Não importa! Pelo menos deve ter consciência que chegou aqui obsoleto, fora de hora, e em razão disso, se fez cabisbaixo e constrangido. Mas ainda assim, apesar dos pesares, chegou.
Percebi
que soprava desmotivado, com uma delicadeza, que não combinava com a pressa do
mundo, pelo menos do mundo distante do qual viera. Ao chegar aqui, passou pelas
frestas da janela do meu quarto como quem pede licença, e não como quem tem o
poder quase soberano de invadir sem pedir permissão. Era, esse cidadão
(cidadão?), sim um cidadão, um vento que não queria soprar, ou melhor, não
queria mudar nada. Ainda mais lufando. Só queria lembrar para euzinha que
estava aqui, mesmo que ninguém mais, além de minha pessoa, esperasse por ele.
Olhei para a praça. No mesmo lugar, a igreja, a casa do padre colada. Passos à
frente, a farmácia, a padaria, e a agência do correio.
Apadrinhado
a mercearia, a funerária do senhor Difuntino ostentava dois caixões sisudos em
pé, lembrando aos passantes que se a morte, de repente se achegasse, teria como
acomodar as almas dos falecidos e deixarem para trás o que não valia mais a
pena. Esticando as minhas observações, me cumprimentaram os bancos e as mesas
de cimento. Vazias de vida. As crianças que brincavam nos balanços sem
conservação, igualmente tinham caído fora fazia horas. Os cinquentões e os
oitentões acumulados nas carcaças de seu Egídio, seu Marcelo, do Beto
‘fofoqueiro’ mais o Barbosa da carpintaria, que jogavam buraco, palitinhos,
dama e xadrez, idem.
No contexto do quadro que surgiu às minhas tristezas, só Kadú, o cachorro pulguento e malcuidado do pipoqueiro Aldífaz, solitário como sempre, levantou a cabeça e emitiu uns latidos sem força quando o vento por ele passou farejando o ar como quem reconhece um velho amigo. Esse vento tardio não trouxe promessas. Não anunciou chuva, nem mudança de estação. Alto lá. Que estação? Nem trem havia! Dele, o trem, só a ‘parada’ se erguia abandonada com o nome da localidade embaçada, ‘Santa Espigosa do Norte’ acompanhada dos trilhos que se perdiam de vista deitados sobre os dormentes estuporados e carcomidos pela falta de manutenção.
O
resto, em tudo, só a presença. Talvez, para melhorar o quadro, um sopro de
memória. Um lembrete de que nem tudo precisava ficar para sempre. Apenas
permanecer, e durar o tempo necessário sem fazer sentido. Talvez seja isso que
nos falta a todos que ainda vivem aqui neste fim de mundo: aceitar os ventos
que chegam depois. Os amores que demoram, os perdões que hesitam, os sonhos que
se encompridam. No fundo, o tempo não é um relógio, é um sopro. Às vezes, ele
encosta como hoje. Tarde, às vezes até esquecido que precisa realmente vir sem
alvoroçar alertando a taciturnidade que chegou. Nessa noite, por volta das
oito, o vento ainda insistia em ficar fingindo que soprava.
Não
mais hora, contudo, ele queria mostrar serviço. Esse vento, afinal das contas,
conhecia os caminhos. Privilegiava todos. Havia passado por aqui em outros
tempos, em outras ocasiões quando os bancos da praça tinham um bocado de nomes
gravados por casais que juravam eternidade em corações pintados com flechas mal
desenhadas e as árvores guardavam segredos em suas copas. Era, bem sei, o mesmo
vento que anos atrás, bagunçava os meus cabelos, levantava os vestidos de
outras mocinhas recatadas que vinham trocar salivas em forma de beijos
fumegantes com seus pares. Dessa leva, poucas foram oscular os segredos do
Santo Altar.
Algumas,
à força, motivada pelas ‘volumosidades’ das barrigas crescidas antes do tempo.
Outras, para que o ‘namoro’ não desonrasse o bom nome das famílias mais
tradicionais. E a dona Candoca? Ah, dona Candoca, sem tirar nem pôr, a minha
vizinha ‘parede-meia’. Se ela desse um peido, cheirávamos juntas. Um espirro,
eu gritava ‘saúde’. Lembro dela, sentada no degrau da sua varanda. De braços
dados com a minha. A mesma senhorinha que trazia consigo o cheiro do café (que
esfriava rápido demais), todavia, nunca deixava de ser reconfortante. A mesma
longeva que bordava as cortinas das outras famílias que carnavalizavam alegres
nos começos de cada alvorejar.
Nesse
tom, quando as venezianas das moradias da nossa rua (aliás, a principal)
pareciam mais alegres e os vindouros se mostravam com uma pontinha de promessas
futuras e cheias de significados, nos alegrávamos sobremaneira. Muitos dos nossos vizinhos se foram. Tirando
a dona Candoca, eu e mais umas três velhotas solteironas insistíamos com os
nossos rostos encarquilhados de um ontem falecido. E o vento? Meu Pai, nessa
época, ele tocava as paredes, afoitamente como se quisesse derrubar tudo. Não
tinha medo de fortalecer duramente, porém, harmonizando lembranças adormecidas.
E o fazia com potência veemente e vigor ‘dinamiquíssissimo’.
Cada
sopro parecia escancarar uma gaveta abarrotadas das memórias das nossas cômodas
cheias de cupins. A bicicleta do pipoqueiro, deixou o muro onde se punha
encostada. O cachorro do dentista foi atropelado pelo caminhão de lixo da
prefeitura. Os portões do salão de beleza da Alzira que rangiam as suas dores,
como se ainda esperassem alguém sair ou entrar, perderam as línguas. Tudo por
aqui e acolá se quedou num intacto ausente.
O vento tardio, desde então, não quis mudar mais nada. Hoje só dá as
fuças para nos lembrar. E talvez, no fundo, sempre foi isso o que fez. Se
moldava, ou dito de forma mais objetiva, se adequava, se cultivava como um
mensageiro do tempo, um empregado (o carteiro de lembranças) sem as insígnias
do Correio?
Kikikikikiki...
não importa: um sussurro, um balbuciar do que fomos. Nessa tarde ele chegou
tarde. O vento se esgueirou acabrunhado e sorumbático, pelas beiradas sem
aquele explícito manifesto da mais desassombrada e lúcida vontade de se fazer
fiel, legal, real. Saí à varanda. Dona Candoca também, E ele, o vento passou
por nós. Por um instante, meu Cristo, por um instante, eu e dona Candoca,
inebriadas num lapso de tempo, voltamos a ser ‘mocinhas’.
Imagine!‘mocinhas-meninas-sonhadoras’ e para todo sempre, ‘donzelas imaculadas’
daqueles janeiros virgens que se perderam no derradeiro trem que partiu aqui da
velha estação deixando de deflorar o amago mais profundo da nossa alma
assanhadamente em festa.
Título
e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro,
9-11-2025
Às vezes alguns momentos difíceis resolvem nos tirar do foco. Não permitam
O agora, é só o agora...
[As danações de Carina] Escolhas
Quando o amor é verdadeiro ele late forte até na distância
De repente, em pleno voo, quem entra em cena?

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