domingo, 9 de novembro de 2025

[As danações de Carina] Ventos de outros tempos não sopram mais

Carina Bratt

O VENTO chegou tarde nesse começo triste de quase noite. Se fez presente tão ‘molengamente’ que não havia mais roupas no varal, nem as folhas das árvores do meu quintal se mostraram simpáticas para saírem do seu estado de marasmo e dançarem com ele. Chegou esse vento ausente de vida, assim, como quem perdeu o ônibus, como quem não tinha dinheiro para solicitar um Uber. O danado esqueceu até do aniversário de um alguém importante que morava casas abaixo da minha. Um alguém? Quem? Não importa! Pelo menos deve ter consciência que chegou aqui obsoleto, fora de hora, e em razão disso, se fez cabisbaixo e constrangido. Mas ainda assim, apesar dos pesares, chegou.

Percebi que soprava desmotivado, com uma delicadeza, que não combinava com a pressa do mundo, pelo menos do mundo distante do qual viera. Ao chegar aqui, passou pelas frestas da janela do meu quarto como quem pede licença, e não como quem tem o poder quase soberano de invadir sem pedir permissão. Era, esse cidadão (cidadão?), sim um cidadão, um vento que não queria soprar, ou melhor, não queria mudar nada. Ainda mais lufando. Só queria lembrar para euzinha que estava aqui, mesmo que ninguém mais, além de minha pessoa, esperasse por ele. Olhei para a praça. No mesmo lugar, a igreja, a casa do padre colada. Passos à frente, a farmácia, a padaria, e a agência do correio.

Apadrinhado a mercearia, a funerária do senhor Difuntino ostentava dois caixões sisudos em pé, lembrando aos passantes que se a morte, de repente se achegasse, teria como acomodar as almas dos falecidos e deixarem para trás o que não valia mais a pena. Esticando as minhas observações, me cumprimentaram os bancos e as mesas de cimento. Vazias de vida. As crianças que brincavam nos balanços sem conservação, igualmente tinham caído fora fazia horas. Os cinquentões e os oitentões acumulados nas carcaças de seu Egídio, seu Marcelo, do Beto ‘fofoqueiro’ mais o Barbosa da carpintaria, que jogavam buraco, palitinhos, dama e xadrez, idem.

No contexto do quadro que surgiu às minhas tristezas, só Kadú, o cachorro pulguento e malcuidado do pipoqueiro Aldífaz, solitário como sempre, levantou a cabeça e emitiu uns latidos sem força quando o vento por ele passou farejando o ar como quem reconhece um velho amigo. Esse vento tardio não trouxe promessas. Não anunciou chuva, nem mudança de estação. Alto lá. Que estação? Nem trem havia! Dele, o trem, só a ‘parada’ se erguia abandonada com o nome da localidade embaçada, ‘Santa Espigosa do Norte’ acompanhada dos trilhos que se perdiam de vista deitados sobre os dormentes estuporados e carcomidos pela falta de manutenção. 

O resto, em tudo, só a presença. Talvez, para melhorar o quadro, um sopro de memória. Um lembrete de que nem tudo precisava ficar para sempre. Apenas permanecer, e durar o tempo necessário sem fazer sentido. Talvez seja isso que nos falta a todos que ainda vivem aqui neste fim de mundo: aceitar os ventos que chegam depois. Os amores que demoram, os perdões que hesitam, os sonhos que se encompridam. No fundo, o tempo não é um relógio, é um sopro. Às vezes, ele encosta como hoje. Tarde, às vezes até esquecido que precisa realmente vir sem alvoroçar alertando a taciturnidade que chegou. Nessa noite, por volta das oito, o vento ainda insistia em ficar fingindo que soprava.

Não mais hora, contudo, ele queria mostrar serviço. Esse vento, afinal das contas, conhecia os caminhos. Privilegiava todos. Havia passado por aqui em outros tempos, em outras ocasiões quando os bancos da praça tinham um bocado de nomes gravados por casais que juravam eternidade em corações pintados com flechas mal desenhadas e as árvores guardavam segredos em suas copas. Era, bem sei, o mesmo vento que anos atrás, bagunçava os meus cabelos, levantava os vestidos de outras mocinhas recatadas que vinham trocar salivas em forma de beijos fumegantes com seus pares. Dessa leva, poucas foram oscular os segredos do Santo Altar.

Algumas, à força, motivada pelas ‘volumosidades’ das barrigas crescidas antes do tempo. Outras, para que o ‘namoro’ não desonrasse o bom nome das famílias mais tradicionais. E a dona Candoca? Ah, dona Candoca, sem tirar nem pôr, a minha vizinha ‘parede-meia’. Se ela desse um peido, cheirávamos juntas. Um espirro, eu gritava ‘saúde’. Lembro dela, sentada no degrau da sua varanda. De braços dados com a minha. A mesma senhorinha que trazia consigo o cheiro do café (que esfriava rápido demais), todavia, nunca deixava de ser reconfortante. A mesma longeva que bordava as cortinas das outras famílias que carnavalizavam alegres nos começos de cada alvorejar.

Nesse tom, quando as venezianas das moradias da nossa rua (aliás, a principal) pareciam mais alegres e os vindouros se mostravam com uma pontinha de promessas futuras e cheias de significados, nos alegrávamos sobremaneira.  Muitos dos nossos vizinhos se foram. Tirando a dona Candoca, eu e mais umas três velhotas solteironas insistíamos com os nossos rostos encarquilhados de um ontem falecido. E o vento? Meu Pai, nessa época, ele tocava as paredes, afoitamente como se quisesse derrubar tudo. Não tinha medo de fortalecer duramente, porém, harmonizando lembranças adormecidas. E o fazia com potência veemente e vigor ‘dinamiquíssissimo’.

Cada sopro parecia escancarar uma gaveta abarrotadas das memórias das nossas cômodas cheias de cupins. A bicicleta do pipoqueiro, deixou o muro onde se punha encostada. O cachorro do dentista foi atropelado pelo caminhão de lixo da prefeitura. Os portões do salão de beleza da Alzira que rangiam as suas dores, como se ainda esperassem alguém sair ou entrar, perderam as línguas. Tudo por aqui e acolá se quedou num intacto ausente.  O vento tardio, desde então, não quis mudar mais nada. Hoje só dá as fuças para nos lembrar. E talvez, no fundo, sempre foi isso o que fez. Se moldava, ou dito de forma mais objetiva, se adequava, se cultivava como um mensageiro do tempo, um empregado (o carteiro de lembranças) sem as insígnias do Correio?

Kikikikikiki... não importa: um sussurro, um balbuciar do que fomos. Nessa tarde ele chegou tarde. O vento se esgueirou acabrunhado e sorumbático, pelas beiradas sem aquele explícito manifesto da mais desassombrada e lúcida vontade de se fazer fiel, legal, real. Saí à varanda. Dona Candoca também, E ele, o vento passou por nós. Por um instante, meu Cristo, por um instante, eu e dona Candoca, inebriadas num lapso de tempo, voltamos a ser ‘mocinhas’. Imagine!‘mocinhas-meninas-sonhadoras’ e para todo sempre, ‘donzelas imaculadas’ daqueles janeiros virgens que se perderam no derradeiro trem que partiu aqui da velha estação deixando de deflorar o amago mais profundo da nossa alma assanhadamente em festa.

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 9-11-2025

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