segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A vitória de Trump explicada às criancinhas

Alberto Gonçalves

1. O próximo presidente dos EUA será o célebre pantomineiro Donald Trump, um racista que tem negros entre os seus principais apoiantes, um xenófobo casado com uma estrangeira, um intolerante que diz coisas simpáticas sobre as "causas" gay, um belicista que condena intervenções militares e um sexista que conspurca a tradição cavalheiresca que vai dos Kennedy ao sr. Clinton. A América bateu no fundo.

2. Pensando melhor, a acreditar nos sábios da opinião televisionada e publicada, a América já batera no fundo quando elegeu Bush filho, o simplório, Bush pai, o esbirro da CIA, e Reagan, esse actor de terceira categoria. Excepto quando elege socialistas, a América vive a descobrir novos fundos. Felizmente para nós, os fundos europeus têm um significado diferente.

3. Trump, asseguram os especialistas, representa uma América dividida. Já Hillary é a América "inclusiva" (sic), a América que acolhe todos. Todos, excepto as dezenas de milhões de selvagens, iletrados, campónios, desdentados, racistas, retardados, brancos, mafarricos e membros do KKK que votaram Trump e, por isso, mereciam a forca ou o desterro. À intolerância responde-se com o amor incondicional.

4. Muito se falou na incapacidade de os eleitores de Trump - analfabetos alimentados a ódio, lembram-se? - aceitarem uma derrota. Por sorte, os eleitores de Hillary têm bom perder: descontados os insultos, as manifestações e a ocasional destruição de propriedade alheia, aquilo é tudo gente civilizada.

5. Num ponto a "inteligência" acertou: Trump ganhou graças ao medo - o medo que a "inteligência" quis que os eleitores sentissem face a Trump, e a impediu de perceber o que quer que fosse. Não fora a realidade, a "inteligência" iria longe. Na manhã seguinte, em vez de reconhecerem o erro e mudarem de profissão, os peritos continuaram por exemplo a prever a queda das bolsas. Enquanto as bolsas subiam a valores inéditos. Força, rapaziada.

6. Ao contrário de Trump, Hillary beneficiou do apoio de inúmeras celebridades. Em vão, escusado dizer. Ainda hoje estou para perceber porque é que o eleitor americano médio não vota nos candidatos indicados por Lady Gaga, Bruce Springsteen e aquele rapaz dos Bon Jovi.

7. A propósito de celebridades, muitas prometeram mudar de país caso Trump ganhasse. A preferência parece cair no Canadá, mas houve quem referisse a Espanha, a Inglaterra e a Nova Zelândia, cujos aeroportos já fervilham de paparazzi à espera das vedetas. Nenhuma se mostrou desesperada a ponto de escolher Portugal.

8. A propósito de Portugal, cá como lá os canais televisivos colocaram criaturas que não perceberam nada do que se passou até às eleições para nos elucidarem acerca do que se vai passar a seguir. E todas continuam a não entender que cada uma, à sua microscópica escala, simboliza exactamente a cegueira e a arrogância que alimentaram o sucesso de Trump.

9. Fervorosos apoiantes do governo português, um bando de oportunistas a reboque de leninistas, guevaristas e estalinistas, alertaram repetidamente e sem se rir para as mentiras e a demagogia de Trump. É preciso cuidado com quem manda na América; aqui, qualquer porcaria serve.

10. O inquilino da Câmara de Lisboa, que ninguém elegeu, mandou pendurar pela cidade uns cartazes alusivos à vitória do presidente eleito dos EUA. Se calhar, a coisa pretendia ter graça. Como os cartazes estão escritos num inglês pior do que o dos rednecks de Trump e tão mau quanto o português do antecessor na autarquia, a coisa tem graça.

11. A SIC convidou uma psicóloga para ensinar a explicar a vitória de Trump às criancinhas (a julgar pela sensatez das análises, a vitória de Trump tem sido até aqui explicada pelas próprias criancinhas). A Visão publicou um editorial intitulado "Merda, merda, merda." O popular fundador, líder e membro do falecido partido Livre convocou um colóquio destinado a combater o trumpismo (?). Aparentemente, o combate faz-se pela comédia involuntária.

12. O facto de haver tantos comentadores, politólogos e analistas a garantirem que Trump é mau não garante que Trump seja bom. O homem é avesso a Washington e à globalização e à Europa e à NATO. O homem privilegia o "investimento" público e a "criação" de emprego. O homem entende-se com Putin. De repente, Trump confunde-se com um esquerdista comum. Porém, dado que irrita esquerdistas, é possível que tenha alguma virtude.

13. Simplificando imenso, Trump ganhou porque prestou, ou fingiu prestar, atenção à parte da população que só não é desprezada quando a usam para protagonizar momentos de chacota. Às vezes, as pessoas cansam-se.

14. Trump não foi o primeiro não político a chegar à Casa Branca, mas foi o primeiro não político que não precisou de ganhar uma guerra civil ou mundial para o conseguir. Sob certo ponto de vista, trata-se de uma proeza. Quanto ao resto, convém esperar para ver. A beatificação de Obama acabou por ser precoce. Talvez a demonização de Trump também o seja. É questão de fé: tenho pouca em Trump, e nenhuma na lucidez dos analistas.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 13-11-2016

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