segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A extrema-esquerda só é marxista-leninista quando convém

José Milhazes

Comunistas e satélites só aceitam as regras democráticas para chegarem ao poder, não para saírem dele. Se tivesse sabido perder, talvez Evo Morales pudesse voltar por via eleitoral. Assim teve de fugir

O marxismo-leninismo reza que nenhum movimento social e revolução pode realizar-se e ter êxito se não existirem condições objetivas e subjetivas para tal, mas, quando a realidade lhe é desfavorável, a extrema-esquerda trai os seus mestres e entra na teoria da conspiração.

O caso da queda de Evo Morales na Bolívia é mais uma prova evidente disso. Qual a principal causa objetiva da fuga apressada desse dirigente do seu país? Foi a descoberta de lítio ou mais uma obra da CIA? Teriam sido “manobras da reação interna”? Claro que não. Essa causa consistiu no facto de Evo Morales se querer transformar em mais um Fidel Castro na América Latina e a maioria dos bolivianos não querer tal regime.

A acreditar nos dados das Nações Unidas e de outras organizações internacionais, Morales até pode ter contribuído para o melhoramento substancial da vida do seu povo, principalmente dos mais desfavorecidos. Mas isso não lhe dá o direito de eternizar o seu poder. A instabilidade política na Bolívia tem origem na violação das leis por parte do ex-Presidente boliviano: não aceitou os resultados do referendo que lhe impediam de recandidatar-se a mais um mandato e tentou falsificar os resultados da eleição presidencial quando viu que o poder lhe fugia democraticamente das mãos.

Seria ingénuo não esperar que a oposição ficasse de braços cruzados perante um argumento tão forte para afastar Morales do poder, ou seja, o dirigente boliviano foi o criador de condições objetivas para a sua queda.

Quanto ao papel das massas nas revoluções e levantamentos sociais, a falsidade na análise da extrema-esquerda é também muito evidente. Se, no Chile, onde os cidadãos lutam pelos seus interesses com greves e manifestações de ruas, as massas são “revolucionárias”, porque é que, na Bolívia, as massas que protestaram contra um poder que se tentou eternizar inconstitucionalmente são “contrarrevolucionárias”?

Isto vem apenas confirmar uma vez mais que os comunistas e satélites só aceitam as regras democráticas para chegarem ao poder, mas não para saírem dele. Porque é que Evo Morales não deixou o cargo de Presidente quando a maioria dos bolivianos votou contra um novo mandato dele e, depois, tentou manipular os resultados eleitorais? Se tivesse sabido perder, talvez dentro de algum tempo pudesse regressar ao poder por via democrática, mas políticos como Morales na Bolívia, Maduro na Venezuela, Ortega na Nicarágua, governando em situações diferentes, têm um traço comum: veem-se como uma espécie de Fidel Castro em Cuba e não acreditam nas massas.

A descoberta de lítio na Bolívia, a intervenção da CIA e dos Estados Unidos ou outros fatores poderiam ter influído no decorrer dos acontecimentos, mas, segundo os princípios do marxismo-leninismo, não poderiam ser causas determinantes. E é isto que a extrema-esquerda insiste em não querer ver, porque não pretende aceitar nunca que regimes por ela criados possam cair devido à existência de condições objetivas internas: erros graves na governação e o descontentamento dos cidadãos face aos desvios anticonstitucionais e autoritários dos seus líderes.

Se a revolução comunista russa de 1917 se realizou devido à existência de “condições objetivas e subjetivas” na Rússia, por que razão é que os comunistas teimam em não aceitar que os regimes comunistas na União Soviética e nos seus satélites da Europa caíram porque tinham infraestruturas ultrapassadas, decrépitas (condições subjetivas) e não por obra e graça da CIA ou de outros agentes internos e externos? Não há dúvida que Mikhail Gorbatchov e outros reformadores desempenharam um papel importante nas reformas, mas seria anti-marxista-leninista acusá-los de serem eles os autores do fim de um sistema quase perto da perfeição. Certamente que os países ocidentais, a NATO, a CIA etc., tentaram retirar o máximo proveito desses acontecimentos (duvido que os tenham aproveitado da melhor forma), mas não foram eles que os organizaram ou provocaram.

As “primaveras árabes” não teriam acontecido se não existisse forte descontentamento económico, político e social nos países onde ocorreram, ou seja, se não existissem causas objetivas internas.  Quanto ao aproveitamento da situação por forças internas e externas, ele está presente, mas não se deve confundir as causas e as consequências. Nem atribuir todos os males dos países árabes e muçulmanos ao facto de serem ricos em petróleo. Há outros fatores importantes como, por exemplo, a religião, o traçado de fronteiras etc.

Claro que para os marxistas-leninistas é difícil, ou mesmo impossível, renunciar ao determinismo histórico, que prega que depois do capitalismo só pode vir o socialismo e o comunismo. (Como, na União Soviética, o comunismo tardava a chegar, os ideólogos do regime tiveram de inventar uma nova etapa: o socialismo desenvolvido.)  Mas é um facto que depois do dito socialismo vem novamente o capitalismo, porque todas as experiências com partido único e capitalismo de estado, sem democracia e liberdade de expressão falham, sejam elas de extrema-esquerda ou de extrema-direita.

Isso foi oportunamente notado pelos sociais-democratas, que deram um grande contributo para as reformas sociais, económicas e políticas na Europa.

Voltando novamente à Bolívia, espero que a Presidente-interina Jeanine Áñez convoque e realize o mais rapidamente possível eleições livres e democráticas, para que este país da América Latina não se afunde no caos da instabilidade política.
Título e Texto: José Milhazes, Observador, 17-11-2019

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