O Portugal poucochinho, conformado e
acomodado, tece por estes dias loas a São Mário Centeno. Mas quem defendia
“contas certas” quando isso ainda era impopular sabe que faltou o essencial:
crescimento
José Manuel Fernandes
1 Vai por aí um coro de loas a Mário Centeno. Não sei mesmo
se não lhe hei de chamar antes São Mário Centeno. É um coro em que não alinho.
Mesmo que concordasse com tudo o que é dito sobre o seu mandato como ministro
das Finanças – e não concordo, mas já lá iremos – o simples facto de ter feito
questão de sair do Governo precisamente quando se avizinham os tempos mais
difíceis diz muito sobre ele. O carácter, a fibra e a qualidade dos homens não
se vêm nos dias fáceis, quando o vento sopra de feição – avaliam-se nos dias
difíceis, quando as escolhas são dolorosas e a coragem é posta à prova. Mário
Centeno não quis ser posto à prova, preferiu abandonar o barco no preciso
momento em que os ventos mudavam. Se mais nada houvesse a dizer, tudo estaria
dito.
Mas há muito mais a dizer.
Recentemente, quando anunciou a sua saída, António Costa elogiou os cinco
orçamentos que apresentou, aprovou e executou. Foi pena que se tivesse
esquecido que houve mais um, e que esse foi realmente o “primeiro” e autêntico
orçamento de Mário Centeno, aquele que ele desenhou de acordo com as suas
ideias e as suas propostas — só que foi liminarmente chumbado em Bruxelas. Isto
depois de ter sido criticado pelo Conselho de Finanças Públicas e pela UTAO,
críticas que o próprio havia descartado de forma arrogante. Teve então de fazer
um segundo orçamento, já de acordo com a ortodoxia das “contas certas”, e a
partir daí não se desviou do novo guião.
Mas aqueles meses iniciais
custaram-nos caro. Durante uma boa parte do ano de 2016 os juros de dívida
portuguesa estiveram em alta, tão acima daquilo que se esperava que o reembolso
antecipado de uma fatia do empréstimo do FMI (o que pagava juros mais altos)
teve de ser adiada, com os custos inerentes. Sendo que nesse ano de 2016 foram
necessários mil malabarismos, malabarismos esses que foram ao ponto de incluir
a venda de aviões F16, para as contas baterem certo.
2 É verdade: a seguir os orçamentos passaram a andar mais
encarrilados, o défice continuou a cair, foi até possível chegar a 2019 com um
excedente orçamental, o primeiro da democracia portuguesa. Houve mérito de
Mário Centeno nesse processo? Claro que houve, porque conseguiu guardar as
chaves do cofre. Mas é preciso acrescentar duas coisas: só o conseguiu fazer
com sucesso porque beneficiou de condições excepcionalmente favoráveis e só o
alcançou usando métodos pouco transparentes e nalguns casos nada recomendáveis.
Em 2015 Portugal
gastou o equivalente a 4,6% do PIB para pagar os juros da sua dívida pública.
Em 2019 necessitou apenas de 3,0%. Ou seja, metade do milagre de São Mário Centeno
é afinal o milagre de São Mário Draghi
O caminho que tinha de
percorrer não era muito longo se o compararmos com a legislatura anterior
(havia que trazer o défice de 3% até zero, enquanto antes houvera que trazê-lo
de 10% até aos 3%), mas sobretudo as condições eram muito mais favoráveis.
A que mais beneficiou as
contas públicas foi a descida das taxas de juro. Malgrado os solavancos do
primeiro ano, em 2015 Portugal gastou o equivalente a 4,6% do PIB para pagar os
juros da sua dívida pública. Em 2019 necessitou apenas de 3,0%. Ou seja, metade
do milagre de São Mário Centeno é afinal o milagre de São Mário Draghi e da sua
política monetária, pois só a redução dos encargos com o pagamento dos juros da
dívida pública representou aproximadamente metade da redução do défice.
Mas há mais. Decisões
discricionárias – e nem sempre consensuais – sobre a distribuição de dividendos
do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Depósitos também contribuíram como
mais 0,3 pontos percentuais para a descida do défice. Também aqui estes
dividendos foram possíveis muito devido às políticas do Banco Central Europeu.
Temos assim que quase dois
terços daquilo que Mário Centeno conseguiu foi-lhe oferecido de bandeja. O
resto resultou das opções políticas do seu Governo e dos seus truques e
malabarismos. Foi assim que passamos de uma carga fiscal de 34,3% em 2015 para
a carga fiscal recorde de 34,7% em 2019. Desde a primeira hora que aquilo que
nos ia sendo devolvido em impostos diretos (e aqui falamos apenas do IRS)
passava a ser cobrado em impostos indiretos ou através das “taxas e taxinhas”
que se foram multiplicando a todos os níveis da Administração Pública.
Simultaneamente passamos a
viver em regime de mentira orçamental. E mentira orçamental assumida. Os
orçamentos que Mário Centeno entregava na Assembleia da República e os
orçamentos que depois ele executava não eram os mesmos. Para agradar à
geringonça, previu-se sempre mais despesa, sobretudo despesa de investimento,
que depois não se concretizava. As “cativações” entraram na gíria política e
passou-se a assumir como normal que os deputados aprovassem uma coisa e,
depois, o ministro das Finanças distribuísse pelos Ministérios outra coisa
diferente.
Pior ainda foi o que se passou
na área do investimento público, onde em 2016 também se bateu um recorde, o do
menor investimento público em percentagem do PIB desde o fim do II Guerra
(custa a crer mas é verdade), e onde nem em 2019 de conseguiu chegar, em termos
nominais e sem correção pela inflação e pelo crescimento econômico, ao nível a
que se estava em 2015. Todos sabem o que isso significou e significa em
degradação dos serviços públicos.
3 Claro que podia ter sido pior e não faltaram pressões,
vindas da geringonça e do Partido Socialista, para que fosse pior. Mas António
Costa sabia, porque tinha feito a campanha eleitoral de 2015, que o eleitorado
via o PS com um partido despesista, e por isso deu sempre cobertura ao ministro
das “contas certas”.
Para o país foi bom ter
“contas certas”, mas fazê-lo desta forma teve o seu preço, uma responsabilidade
que será sobretudo do chefe do Executivo. Mas ter estado num Governo que
reverteu algumas reformas laborais no sentido contrário ao que defendera toda a
vida, não ter prosseguido a política de descida do IRC, ter abdicado de mexidas
na TSU, ter visto gradualmente desmantelar a liberalização do mercado do
arrendamento, tudo isso ajudou a que Mário Centeno fosse pelo menos cúmplice de
Portugal ter crescido menos e ter crescido pior, com menos produtividade e
menos qualidade, naqueles que poderiam ter sido anos de ouro da nossa economia.
O Portugal de
Centeno sempre foi muito poucochinho, porque só alguém com pouca ambição pode
satisfazer-se com os próprios autoelogios quando lidera as Finanças de um país
que está na cauda da Europa (20º lugar entre 27) e vê 19 países a crescer mais
do nós.
O balanço vinha de trás, com a
alteração estrutural que a viragem da economia para os mercados externos
significara nos anos da troika, com o boom do turismo, com a oportunidade do
imobiliário e com “Portugal na moda”, mas quando verificamos que nestes quatro
anos acabámos por ser ultrapassados – em termos de riqueza por habitante – por
mais dois países do Leste da Europa, a Estônia e a Lituânia, é porque ficamos
aquém do nosso potencial. Até porque também ficámos aquém da nossa vizinha
Espanha – se ela pôde fazer melhor, por que não pudemos nós?
Já uma vez escrevi: o Portugal
de Centeno sempre foi muito poucochinho, porque só alguém com pouca ambição pode
satisfazer-se com os próprios autoelogios quando lidera as Finanças de um país
que está na cauda da Europa (20º lugar entre 27) e vê 19 países a crescer mais
do nós.
Infelizmente esse Portugal
poucochinho tece por estes dias loas a São Centeno. Eu sei que é quase Portugal
inteiro, mas Portugal inteiro (ou pelo menos o Portugal que se expressa)
sente-se bem, confortável e não se importa de estar semiadormecido como o sapo a morrer lentamente dentro de uma panela.
Já eu, que defendi as “contas
certas” quando outros andavam por aí a dizer que “havia mais vida para além do
orçamento”, não dou para esse peditório.
PS. Não
posso terminar sem recordar que a construção do mito de Mário Centeno começou
no dia em que o apresentaram como o acadêmico genial que tinha sido
injustamente preterido para o lugar de diretor do Gabinete de Estudos do Banco
de Portugal. Sem pôr em causa as competências acadêmicas e científicas do ainda
Ministro das Finanças, a verdade é que mesmo estando acima da média em
Portugal, na última classificação dos investigadores com mais trabalho
publicado ele era apenas o 111º.
Mas não foi isso que esteve em
causa no famoso concurso do Banco de Portugal. O que então aconteceu foi que o
júri que avaliou os candidatos não o recomendou para o lugar – um júri que até
era presidido por um socialista, Rui Vilar. Por quê? Por considerar que o seu
carácter não se adequava à função. Agora que todos lhe conhecemos melhor o
carácter só podemos considerar que tal avaliação foi presciente.
Curiosamente ninguém estranhou
que o “liberal” Centeno se tornasse depois o rosto da equipa de António Costa
por assumidamente estar zangado por ter sido preterido nesse concurso.
Ninguém viu nisso qualquer
falha de carácter, qualquer incoerência. Tiveram de esperar até que ele agora
batesse com a porta para perceber até que ponto o umbigo de Mário Centeno
sempre foi o lugar geométrico do seu mundo.
Título e Texto: José Manuel
Fernandes, Observador,
13-6-2020, 0h10
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Transcrevo aqui um comentário que fiz noutro local há um par de semanas:
ResponderExcluirDiz-se que o maior truque do Diabo foi convencer o mundo de que ele não existe. Aplica-se perfeitamente ao país. Acho errado dizer-se que "o Diabo chegou" com o Covid. O Diabo, pelo contrário, sempre esteve cá. Simplesmente, em vez de se anunciar com fanfarra, tem estado nos detalhes: nos transportes públicos avariados; nos serviços estatais subdimensionados e a esboroarem-se; num serviço nacional de saúde em permanente calote e no qual se esperam anos por uma cirurgia ou por uma primeira consulta de especialidade, meses por uma consulta com o médico de família ou noites por um atendimento de urgência.
Centeno sabe, e o komentariat que o endeusou tem igualmente obrigação de o saber, que nos nossos problemas estruturais quase não se tocou e que os "brilharetes" de Centeno foram na essência conseguidos com um peso fiscal recorde; com orçamentos desvirtuados por cativações planeadas e receitas escondidas (quase se diria serem eles os seus próprios rectificativos), múltiplas vezes criticados na sua (falta de) transparência pela UTAO; com habilidosas "mudanças de metodologia" que permitiram não contabilizar como défice aquilo que o era ou transferi-lo para a dívida; e com mangueiradas de dinheiro despejadas pelo BCE e pelo turismo.
Centeno sabia que estas sucessivas camadas de verniz acabariam por estalar: nem os serviços públicos poderiam jejuar indefinidamente, nem o turismo poderia continuar a crescer o suficiente para esconder as crises de vários outros sectores. Centeno regressou contrariado ao ministério depois das eleições e Centeno não estava com vontade de fazer o orçamento para 2020 pois, mais rato do que o antecessor Teixeira dos Santos, Centeno queria fugir antes dos ventos semeados explodirem em tempestade. E ela já se pressentia: em Janeiro, ainda sem a influência do coronavírus nas economias, a nossa comunicação social passou quase clandestinamente a notícia de que as insolvências de empresas aumentaram em mais de 20% e a criação de novas empresas diminuiu em 20%. Então, em mais um daqueles golpes de sorte que sempre protegeram Costa e Centeno, rebenta a crise do vírus e eles podem empurrar para debaixo de um imenso tapete chamado Covid tudo aquilo que iria, de outro modo, ser destapado por um lençol que chegava aos limites da sua elasticidade.