Ou: O gênio de Churchill, a
idiotia de Edward Said e a delinquência de Tariq Ali.
Ou: Não sou “Charlie
Hebdo”; o “Charlie Hebdo” é que é parte, e só parte, do que somos.
Culpar o Alcorão
pelos ataques terroristas havidos na França é, de fato, ridículo. Livros não
matam ninguém. As ideias, ah, estas, sim, podem produzir grandes desastres.
Ainda bem que, ao longo do tempo, as exegeses judaica e cristã se encarregaram
de interpretar, à luz da vida, não da morte, a vontade de Deus, que pedira a
Abraão que sacrificasse Isaac — o filho que veio depois de tão longa espera. Na
hora “h”, como sabemos, o Senhor conteve a mão do pai, e Isaac não foi imolado
no altar da fé. Também Jó não resta como um bom exemplo, como posso dizer?,
social e psicologicamente justo para testar a fidelidade de um crente. Textos
religiosos são alegorias de sentido moral.
Os convertidos a
uma fé que estão livres do demônio do fanatismo entendem que aquelas situações
arquetípicas são divinamente inspiradas. Elas nos transmitem um valor, não um
exemplo a ser seguido. No que concerne à linguagem — metafórica, alegórica,
metonímica —, não há diferença entre Esopo, os narradores da Torá, os
evangelistas ou Maomé. O que os diferencia é a crença de milhões de que um
conjunto de palavras, e não outro, retrata uma vontade superior, além do
alcance puramente humano, onde está o fabulista Esopo.
Livros, com
efeito, não matam ninguém, mas as religiões ou ideologias que eles inspiram, a
estas podem fazer pilhas de cadáveres. Seria inútil fazer um cotejo entre os
Textos Inspirados dos três grandes monoteísmos — judaísmo, cristianismo e
slamismo — para saber qual investe mais na paz ou na guerra. Há de tudo em
todos eles. Ainda que a Santa Inquisição tenha matado muito menos do que
Robespierre, por exemplo, como justificar as decisões do Tribunal do Santo
Ofício? Folgo que inexistam hoje, que se conheçam, admiradores da fogueira
purgatória. Mas como ignorar que os descendentes do poeta da guilhotina
continuam por aí? O fundamentalismo cristão, felizmente, é residual e sem
importância. Já os filhotes de Robespierre ainda são muito influentes. Sigamos.
Sim, é, de fato, ridículo
atribuir ao Alcorão os atentados terroristas na França, mas indago: por que
havemos de ser nós, os cristãos — ou os ateus e agnósticos dos países de
maioria cristã — a proclamar essa verdade? Onde estão as autoridades religiosas
do islamismo para condenar, atenção!!!, não apenas os ataques terroristas, mas
também a força que os legitima aos olhos — e crenças — de muitos milhões?
Ora, acusar a
barbárie dos dois atos terroristas que deixaram 17 mortos é tarefa
relativamente fácil, mas cadê as vozes relevantes do mundo islâmico para falar
em defesa da liberdade de expressão, do direito à crítica, da pluralidade
religiosa? Não existem! Lamento, mas é impossível ser honesto intelectualmente
e, ao mesmo tempo, sustentar que os valores hoje influentes do islamismo são
compatíveis com a ordem democrática. Neste ponto, alguém poderia dizer, e com
razão: “Ora, também as narrativas de sua Bíblia se chocam com o mundo dos
fatos”. É verdade. Mas pergunto: que país impõe ao conjunto dos cidadãos os rigores da “minha” Bíblia?
Alguém é capaz de um citar um que seja?
Esse é um bom
momento para um tolo provocador produzir obscurantismo em vez de luzes. O bobo
costuma lembrar que a Igreja Católica reconheceu só em 1992 que errou ao
condenar Galileu Galilei, depois de 350 anos. Para todos os efeitos, até essa
data, para a Santa Madre, o Sol é que girava em torno da Terra. Pois é… Em
1992, quantas eram as universidades e escolas católicas mundo afora — e a
Igreja é a maior instituição de ensino do planeta — que defendiam o
geocentrismo? Os médicos e cientistas de seus hospitais produziam e produzem
ciência, não proselitismo religioso.
Eu estou aqui a
perguntar onde estão os reformadores do Islã. E notem: nem peço a eles que
passem a considerar islamicamente legítimo que se desenhe a imagem de Maomé. O
que eles têm de reconhecer — e de transmitir a seus fiéis — é que não podem
impor a outras culturas e a outras religiões valores que a esses são estranhos.
Na melhor cultura política ocidental, que, felizmente, se distingue da
religião, tudo pode e deve estar submetido ao livre exame, e os ofendidos
buscam em tribunais igualmente leigos, regulados por leis democráticas, a
reparação por eventuais agravos. Luta-se com teclados, canetas e lápis de cor,
não com fuzis; faz-se um confronto de togas, não de bombas.
Churchill,
Edward Said e Tariq Ali
Infelizmente,
não li nem ouvi uma só autoridade religiosa muçulmana — e me refiro àquelas que
condenaram os ataques, já que as outras, por definição, não o fariam — a
defender o direito que têm os não islâmicos de nações não islâmicas de se comportar
como não islâmicos. Entendo! Afinal, na esmagadora maioria dos países
muçulmanos, estado e religião se misturam, quando não estão submetidos a uma
mesma ordem, e a pluralidade religiosa é um valor que suas comunidades cultivam
no Ocidente, mas jamais nas terras consideradas já sob o domínio do Profeta. Ou
não é verdade que os muçulmanos se espalham no Ocidente instrumentalizando um
valor — o da pluralidade — no qual eles próprios não acreditam em seus países
de origem? Ou não é verdade que eles usam em sua defesa um direito — a da
liberdade religiosa, garantida pelo Ocidente democrático — que sonegam aos
cultores de outras crenças?
O jovem
Churchill, ele mesmo!, escreveu em 1899, no segundo volume de ‘The River War –
A Reconquista do Sudão”, o que segue:
“Como são
terríveis as maldições que o maometismo impõe a seus adeptos! Além do frenesi
fanático, tão perigoso num homem como a hidrofobia num cão, existe a apatia
fatalista do medo. As consequências são evidentes em muitos países. Onde quer
que os seguidores do Profeta governem ou vivam, há costumes imprevidentes,
sistemas desleixados de agricultura, métodos atrasados de comércio e
insegurança da propriedade. (…). O fato
de que, no direito muçulmano, toda mulher deva pertencer a um homem como sua propriedade
absoluta — seja uma criança, sua esposa ou concubina — retardará a extinção da
servidão. E será assim enquanto o Islã for uma grande força entre os homens.
Indivíduos muçulmanos podem demonstrar qualidades esplêndidas, mas a influência
da religião paralisa o desenvolvimento social daqueles que a seguem. Não existe
força mais retrógrada no mundo. Longe de estar moribundo, o islamismo é uma fé
militante, de prosélitos. Ele já se espalhou por todo o centro da África,
criando, a cada passo, guerreiros destemidos. Não estivesse o Cristianismo
protegido pelos braços fortes da ciência — ciência contra a qual lutou em vão
—, a civilização da moderna Europa já poderia ter ruído, como ruiu a
civilização da Antiga Roma”.
Como ouso citar
aqui a visão que o colonizador — no caso, o inglês Churchill — tem do
colonizado? Pois é. Mergulho, assim, numa das farsas mais influentes do nosso
tempo, cujo livro de referência é “Orientalismo”, escrito pelo palestino Edward
Said. Pesquisem. A tese é conhecida, simplista e mentirosa: existiria um
“Oriente” inventado pelo Ocidente (e já evidencio de modo muito simples por que
Said é uma piada) como uma espécie de espantalho a justificar toda sorte de
brutalidades. Essa suposta construção — da qual certamente a observação de Churchill
faria parte — teria se dado ao longo de séculos, atendendo apenas a interesses
muito objetivos, essencialmente econômicos e políticos.
Said é um
farsante porque, convenham, não existindo razões para haver “um Oriente”,
também não haveria para haver “um Ocidente”. Se cai o termo da equação de um
lado, há de cair o seu correspondente no outro. Mas esse nem é o aspecto mais
importante. Por mais condenável que fosse ou que tenha sido o colonialismo
europeu, particularmente o britânico, nos países islâmicos, cumpre indagar: o
que foi que eles fizeram dessa herança e em que medida a religião serviu para
libertar ou para escravizar os povos?
A Folha de
S.Paulo deste domingo publica um artigo asqueroso de Tariq Ali, escritor
paquistanês que vive folgadamente na Inglaterra, misturando em doses idênticas
esquerdismo rombudo, ódio irracional aos EUA e, como direi?, uma simpatia nada
homeopática pelo terror. Segundo esse canalha intelectual, “as circunstâncias
que atraem” os terroristas “não são escolhidas por eles, mas pelo mundo
ocidental”. Entenderam? Tariq Ali não vive sob leis islâmicas, mas sob as
regras da democracia do Reino Unido. Tariq Ali condena, claro, os assassinatos,
mas acha que os verdadeiros culpados são as vítimas. Tariq Ali não é um líder
religioso. Ao contrário: que se saiba, é comunista e ateu, mas entende as
razões dos terroristas e aponta os culpados entre os mortos.
É claro que
ainda voltarei muitas vezes a esse assunto. Encerro este texto indagando, uma
vez mais, o que as diferentes lideranças
muçulmanas, das mais variadas correntes, fazem de efetivo contra a suposta
“islamofobia”. Se o Islã traz uma mensagem de paz, onde estão seus porta-vozes?
Que venham a público não apenas para condenar os atentados covardes, mas para
defender o valor essencial da liberdade. Não! Eu não sou “Charlie Hebdo” porque
isso diz pouco do que sou. O “Charlie Hebdo” é que é parte do que nós somos. E
nem sempre fomos assim. Nós nos tornamos assim! No século 17, ainda queimávamos
hereges. No século 18, ainda cortávamos cabeças.
Eu convido o
Islã a chegar ao século 21. Quem topa?
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