sábado, 29 de dezembro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] ELE

Aparecido Raimundo de Souza

Para todos os meus leitores e amigos e, em especial, à família “Cão que fuma”.

Tinha (apesar nos olhos meigos e abonançados) um brilho diferente, uma claridade que parecia cegar a quem o fitasse por muito tempo. Naquele rosto de plácida complacência, a vida se apresentava de uma forma bastante acentuada. Talvez fosse a sua personalidade marcante, ou o seu modo de ser e de agir que faziam da sua comparência figural, um encanto único e abrangente, um enfeitiço único e jamais sentido.

A todos —, como a mim —, em particular, essa criatura benevolente e nobre, me envolveu com uma esfuziante simpatia. Uma afeição caridosa que se espalhou, de imediato, por todo o resto do corpo. Era como se a ternura tivesse saído de seu habitat natural e, naquela figura repleta e primada de mansuetude e brandura, erigido a sua morada perpétua.

Ao falar usava no timbre da voz uma tranquilidade inebriante, sopesada, uma calma colossal que encerrava e transmitia uma segurança ímpar vinda do céu. Só podia ser do céu. Seus gestos meticulosos, finos e educados, cativavam o mais profundo dos corações.

Meu primeiro contato com Ele aconteceu exatamente algumas horas antes de se comemorar a ceia oficial de natal - e só esse encontro bastou para lhe dedicar uma atenção maior – além de perceber a benignidade da sua fausta e suntuosa fascinação e supremacia. Até então, perfeito idiota, eu me considerava um sujeito vil e infame. Um cara de concepção mesquinha e perversa. Minha vida tinha sido escura, triste e melancólica. Na verdade, por viver na carne esse abatimento consternado, passava por sérios embaraços e dificuldades.

Meus caminhos (a contar de passos longínquos) sofriam funestos de enfurecimentos e agonias, desgraças e incertezas. O negror das nuvens da infelicidade parecia não querer se afastar de sobre a minha cabeça. Entretanto, algo mudou em mim. Alguma coisa me transformou a partir daquela proximidade.

Da minha conexão direta com Ele. Sem intermediários.  Sem meios termos. Um juvenil alento tomou conta da minha alma. Na verdade, minha consistência inteira se desprendeu de uma carga muito pesada e enfadonha. Parecia que um encosto maléfico me sobrecarregava os costados. De repente, como num passe de mágica fiquei flexivo, leve, dobradiço e meneável.

Como que flutuava, pairava, vagueava sobre as coisas. A cabeça parou de girar em torno de pensamentos difusos e os pés descalços de tantos inseguros acertaram terra firme. Deixei de ser barco lutando contracorrentes fortes de um mar em fúria.  Achei porto seguro onde atracar meus sonhos e devaneios.

Ainda agora, percebo tantos natais escoados. Continua a me deleitar o peito e confesso, me apraz o coração, voltar aos nossos inaugurais. Lembro que me achava deitado em minha cama, triste e solitário, vazio e oco, os olhos fechados, pensando no amanhã que horas à frente viria incerto e obscuro. Meus pais haviam saído para providenciar as compras para a ceia da noite.  Meus irmãos brincavam com outras crianças na calçada em frente ao portão de casa e chegavam, até mim, os rumores de suas algazarras.

Foi nessa hora que Ele chegou de mansinho, sem que eu percebesse de onde saíra. Veio do nada, e se fez perene e comiserado. Disse que estava querendo falar comigo há muito tempo. A princípio, fiquei nervoso e cheio de medo. Assombrado. Contudo, ao pousar para o seu rosto e o reconhecer, dor e frustração se dissiparam e eu me acalmei convicto. A tensão e o terror que se escondiam dentro de mim, desapareceram.

Como nossa vida é engraçada: eu tinha um amigo fiel ao meu redor, cuidando de mim o tempo todo, porém nunca me dera conta da sua altanaria. E Ele, por tudo quanto é sagrado, Ele estava ali, tão adido e convizinho. Demasiadamente adjacente e contíguo, só querendo trocar algumas palavras comigo...
— Como, como você — quero dizer — como o Senhor fez isto?
Naturalmente eu me reportava à maneira de como Ele se materializara diante de meu estupefato. Assim, do nada.
— Não importa meu filho — disse quase em sussurro. — O que nos interessa é a sua situação. Fale-me da sua vida. Conte-me seus problemas. 

Lembro que procurei expor as questões mais prementes.  Mostrei as necessidades básicas que se avolumavam com o passar inexorável dos dias. Contei a Ele dos meus sobressaltos. Abri a caixinha dos meus suspensos não realizados. Escancarei as janelas dos meus empreendimentos futuros.

Ele ouviu atento, silencioso, me encarando dentro dos olhos vermelhos de tanto chorar angústias. Em nenhum momento sequer ousou interromper. Quando finalmente terminei o rosário de mazelas que me fustigava, pediu que ficasse de joelhos e orasse. Obedeci. Fiquei de joelhos e supliquei:
— Senhor...  me entrego a seus cuidados...

Ele também se assentou colocando a mão sobre minha cabeça. Venerável, invocou o Eterno. Depois pediu calma, muita calma e desejou toda a paz do mundo para meu lar, para meus familiares e, principalmente, para meus encalhes e estorvos inquietantes.

No minuto seguinte, voltou a cerrar os olhos. Letárgico, em profunda comunhão. Findo um prazo relativamente curto, tomou minha mão de novo e rezou um Pai Nosso e ofereceu ao Altíssimo.  Rogou à Deus, ou melhor, ao Celestial que me abençoasse como, igualmente, a todos que faziam parte dos meus círculos de afeitos e apegados.

Após isso, salientou que precisava voltar para junto do Poderoso. Antes de fazê-lo, contudo, me alertou que bastaria um simples relance de vista para aquele canto do quarto, ou mais precisamente para a parede sobre a cabeceira de minha cama.

Um cândido olhar —, um casto desviar da rota cotidiana —, e Ele estaria comigo, abnegado, altruísta e solidário, ad aeternum. Sempre, desde que tivesse no peito, muita fé, e, no âmago, o verdadeiro amor pelo Onipotente. O Senhor exclusivo das Hostes Celestiais o Absoluto, o Venerável, o Almo Criador de Todas As Coisas.

Ele quis dizer, e, de fato deixou este recado, em outras palavras: “que eu tivesse muito amor mesmo, ou seja, que cultivasse um zelo absoluto e irrestrito ao Grande Arquiteto e Supremo Senhor de Tudo”. Se dessa forma agisse, eu seria uma pessoa “realizada e feliz”.  Assegurei, consternado e lhano, que assim faria, caso sentisse acerbidades ou afrontos rondando minha porta ou os atalhos e vielas a serem seguidos.

— Agora olhe — completou com um sorriso brando. — Mate a sua curiosidade. Veja como fiz para chegar aqui... 
Ele então foi subindo, foi ascendendo, foi alçando, até que se postou inerte, de braços abertos, na tosca cruz de madeira que adornava a parede fria e suja dos meus aposentos. Daí em diante, meus afogadilhos e dubiedades mudaram da água para o vinho.

A noite de natal, especificamente aquela noite de natal, foi esplendorosa e indubitável. As demais porvindouras, perfeitas, sublimes e inesquecíveis. Pela primeira vez, experimentei verdadeiramente a consagração do Dono da Minha Aliança agindo em mim.

Meu corpo mirrado e raquítico virou uma espécie de tabernáculo. Num repente se encheu —, se inundou da unção da Sua Santidade e da sacralização robusta e imperecedoura dos ares benfazejos do Rei da Glória. Desde sempre passei a ser, ou melhor, sou, e continuo sendo uma pessoa completamente FELIZ. FELIZ E REALIZADA. 
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Shangri-Lá, um lugar perdido no meio do nada.


P.S.: O texto acima foi publicado originariamente no livro “ELE”, pela editora AMC-GUEDES Rio de Janeiro, RJ, em janeiro de 2006, 1ª Edição, 100 páginas e, depois, no Site “Para Ler e Pensar” em 30 de junho de 2006.

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9 comentários:

  1. Quando estamos desesperados, sozinhos, solitários em busca de paz aos nossos corações amargurados devemos recorrer aos céus. Esse seu encontro com o todo poderoso, posso afirmar com toda certeza nunca haverá algo tão lindo e maravilhoso, que ser amparado pelo senhor. Sempre me emociono quando leio esse seu texto Aparecido, e em cada palavra vou vivendo a cena como num filme. A emoção toca fundo o coração de quem acredita e crê nesse ser onipotente e onipresente. Eu creio! e minha vida foi entregue a ele para ser direcionada a vontade do pai. Nunca me arrependi ou me arrependo o momento que confiei totalmente as minha dores, angústias, tristezas, pois sei que a todo momento ele está comigo. Parabéns Aparecido pelo excelente texto, rico em detalhes que mexe sempre comigo e minhas emoções. Carla Rejane

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    1. Resposta à Carla Rejane, minha simpática e efusiva leitora das 19:56, do dia 29.12.2018.
      Realmente, Carla quando estamos desesperados, solitários e sozinhos (não necessariamente nesta desordem), devemos recorrer ao céu. Aos céus, jamais, pois só existe um. Sempre faço isto, pois como você sabe passo mais tempo voando que mantendo meus pés em terra firme. Geralmente não encontro com o Todo Poderoso (quem dera!) todo dia, mas sei que Ele está por perto vigiando meus passos e viagens Brasil à fora. Acredito que além do querosene nos tanques para manter viva as turbinas do meu Learjet, o Senhor e não só Ele, igualmente o GADU também dá uma preciosa e infinita ajuda. Aliás, uma ajuda magnificentíssima.
      A primeira vez que falei com Jesus, foi quando escrevi este texto o “Ele” e “Ele”, na ocasião, me tirou de uma enroscada danada. Desde então, não tenho conseguido mais contato, pelo menos tête-à-tête. Telefono, deixo mil recados, mando trocentos WhatsApp, mas entendo que Jesus deve estar preocupado com outras coisas mais serias e urgentes. Apesar disto, mantenho o crucifixo como relíquia. Onde vou, Ele (o Crucifixo) vai junto. Se você tirar uma foto do Crucifixo, é capaz de me ver dependurado nele. Se você tirar uma foto minha, com certeza, sem sobra de dúvidas, verá o crucifixo grudado na minha pele. Esta relíquia, repetindo, me acompanha desde que falei com o Salvador pela primeira vez. Lembra, a propósito disto, um livro de Francisco Bacon (Ensaios) que foi adquirido pelo bibliógrafo ianque Harry Widener antes da 1ª Grande Guerra (1941-1918) por 25.000 francos, verdadeira fortuna, nesta ocasião.
      Widener estimava tanto este livro que mandou costurar no interior de seu casaco um bolso especial para guardar a raridade. Dizia a quem lhe perguntava a razão de semelhante apego: “Não me separarei de minha relíquia mesmo se um dia naufragar”. A profecia, cara amiga Carla, acredite, se realizou. Como assim, certamente me questionará? Aconteceu em abril de 1912, sendo passageiro do colossal Titanic, o cidadão Widener que, tentando salvar a Jack Dawson, perdão, tentando salvar o Leonardo di Caprio e a inimitável e fogosa Rose DeWitt Bukater, desculpe, de novo, pela gafe, a bela Kate Winslett, foi junto com o casal para o fundo do oceano, levando, consigo, o inseparável livreto e pior, grudado nele, nada mais, nada menos, que James Cameron. Assim sou eu. Geralmente onde vou, o Crucifixo vai comigo. Viramos unha e carne. Quando estou em voos domésticos (as famosas pontes aéreas Vitória, Rio de Janeiro, Vitória São Paulo, Vitória Belo Horizonte ou Brasília e etc.), o Crucifixo está bem guardadinho no meu bolso interno. Quanto estou no meu jatinho particular, costumo dependurar no pescoço do meu piloto. Nesta hora, antes de dar inicio à decolagem, elevo a voz ao Altíssimo e clamo: “Senhor, cuida para que hoje não seja o dia do comandante Eduardo levar meu avião para a puta que pariu. Pelo fato de eu estar vivo, conclui-se que tem dado certo.
      Boas entradas. Feliz 2019, com muita saúde, Graça e PAZ!
      Aparecido Raimundo de Souza, de Shangri-Lá, um lugar perdido no meio do nada.

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  2. Verdadeira intimidade com Ele sem delongas, e lindo texto escolheste muito bem as palavras. Parabéns!!

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    1. Obrigado, amigo Pedro. Que o Pai Maior lhe traga bons fluidos em 2019, além de Graças em abundância, muita Saúde, Felicidades, e PAZ.
      Aparecido Raimundo de Souza, de Shangri-Lá, um lugar perdido no meio do nada.

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  3. Caro Aparecido ;
    Você sabe que gosto muito de quase tudo o que vc escreve.
    Este texto eu acho muito bonito, mas cruel!
    Mesmo usando de imágens fantasiosas ,é cruel!
    O teu encontro com "ele" , revela uma imparcialidade da parte dele , não foi justo.
    Apesar de ser "ele"!
    Quantos mais no mundo gostariam de se encontrar com "ele?
    E isto não ocorre!

    Que critérios de seleção "ele usa para privilegiar um ou outro em suas andanças pelo mundo!

    É uma pena constatar ,que "ele" não está disponível para todos que o querem, ou precisam "Ele" opta por visitar aqueles que desistem de o procurar-lo.
    Quantos injustiças no mundo ,na qual "ele" poderia dar uma mãozinha!
    E onde “ele “ esta?
    No templos”
    Nas imagens ou imaginação de pessoas supostamente “boazinhas”?
    Quando o precisamos, onde buscá-lo?
    Na real!
    Sem as fantasias elucubrartivas das religiões enganosas!
    Você foi um privilegiado, !
    Mas "ele " continua me devendo uma visita , e ao mundo .
    Quando se encontrar novamente com a "criatura" pede para "ele" dar uma passadinha em minha casa.
    E no caminho passe em todos os que "ele" encontrar, e que foram esquecidos no fundo de sua agenda.
    Como um papai noel, -ainda que fantasioso- venha ao mundo e pare de vez com a ingratidão de só visitar poucos que desistem de procurar e aceitem, que "ele" não é justo ,e "ele decide a quem visitar , nem adianta pedir ou implorar.
    Ou merecer e precisar!
    Eu mereço , quase tanto quanto preciso!
    Mas acho que como ,pelo menos com a metade da população do mundo,!
    "ele" não vai com a minha cara!
    Abraços e recomendações a "ele" e os pares no divino.
    É hora de examinar meu balança e ver que já tenho créditos suficientes , para ser contemplado!
    Abraços!

    Paizote

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    1. MINHA BALANÇA E MEUS DÉBITOS ESTÃO NEGATIVOS EM CHEQUE ESPECIAL COM JUROS DIVINAMENTE ASTRONÔMICOS, VEJO DEMÔNIOS SE DANDO BEM TODOS OS DIAS, CREIO QUE ESTAMOS NO INFERNO E NÃO SABEMOS.

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  4. AH! como admirador de alguns dos teus escritos, tomo a liberdade de comentar que tem uma palavra em particular em teus textos que me incomoda ,e muito !
    Neste de hoje a usaste pela quinta vez este ano.
    Todas em textos diferentes diferentes!
    O que revela,mesmo que inconsciente , o quanto tem importância para ti!
    Qual?
    Digo não!
    Passou a ser um passatempo para mim busca-la!
    Abraços!

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  5. Que coisa!
    Sim! Fui eu de novo

    PAIZOTE

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  6. Ah! E a senhorinha Carina usou duas vezes? Pelo menos foi o que notei no ultimo semestre
    Osmose?
    Abraços à ambos!
    Paizote

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