sexta-feira, 1 de maio de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Altas horas

Aparecido Raimundo de Souza

O TELEFONE SE ESGOELA NA DELEGACIA DE POLÍCIA  às duas horas da manhã. Juvenal, o policial de plantão que tirava um cochilo acorda assustado.  Dá um pulo da cadeira, pega a arma, espia desconfiado para todos os lados. Confere as câmeras internas do circuito. Não é o alarme de fuga indicando a evasão de algum detento.  É o telefone, na sala do delegado.  Corre até ele e  atende:
- Alôa...
- Bom dia, seu policial, desculpe as horas e o incômodo...
- Em que posso ajudar, meu senhor?
- O amigo ai vai pensar que é brincadeira minha. Acredite, não é. Um gato acabou de entrar na minha casa.

Juvenal ia responder com alguns impropérios formados e em ponto de tiro, no bico da língua, mas, ouvindo a voz apavorada de quem estava do outro lado, manerou e procurou tranquilizar a criatura.
- Um gato? Senhor, um gato não faz mal a ninguém. Procure esquecer o bichano e ir dormir. É o melhor que o senhor tem a fazer.
- Vou tentar... Juro que vou tentar... Desculpe. E obrigado.
- Não por isso. Disponha.
Ambos desligaram.

Coisa de uma hora à frente, o aparelho, voltou à carga, tirando, de novo, o Juvenal da sua soneca. Da mesma forma que da primeira vez, o infeliz pulou espavorido, engatilhou o revorver, olhou pelas câmeras de monitoramento, nada. Tudo em ordem. Caiu em sí. “Droga, droga! O telefone na sala do delegado”.
- Alôaaa...
- Bom dia, seu policial... Sou eu de novo...
- Eu? Eu quem?
- Liguei algum tempo atrás...
- Não dá pra saber. Tanta gente ligando. Do que se trata?

- A respeito do gato...
- Já lhe falei, meu amigo. Gatos não fazem mal algum.
- Seu policial, pelo amor de Deus, agora são dois.
Juvenal começa a se irritar:
- Amigo... Amigo... Pega uma vassoura e espanta os pobrezinhos. Ou melhor, passa a mão numa cadeira, ou outro objeto qualquer e atira nos bichos.
- Meu pai do céu, seu policial, não posso! Aliás, não tenho como. Jesus, Maria, José, que inferno...

Juvenal ia retrucar alguma coisa, mandar o chato de galochas para os quintos do inferno. Desnecessário. A ligação foi  bruscamente interrompida.

Não decorre meia hora e o aparelho, desta feita numa estridência que ao Juvenal pareceu ser maior que das vezes passadas, volta a quebrar o seu tumultado descanso. O desditoso está a ponto de se rasgar de raiva.  “Que droga reclama com seus botões. - Nem uma pestana a gente tem direito de tirar nesta porcaria de delegacia”.
Pela demora em chegar até  os alaridos do insuportável telefone, os presos das duas celas existentes botam a boca no trombone e começam a protestar: ‘Cara, atendi logu essa geringonça. Queremu durmi. São quatro hora da matina, ô meu! Tá moscano?’. Amanhã, assim que o dotô chega nois todos vai chama ele aqui drento e reclamá”.    

- Alôaaa...
O desconhecido estava aos prantos.
- Seu policial, me  perdoe,  peço encarecidamente. Me desculpe...
- O que foi agora, meu senhor?
- Esta se recordando de mim?
- Sim, dos gatos!
- Isso mesmo...
- Conseguiu espantá-los?
- Qual o quê, meu nobre. Agora são três.

Juvenal não ia deixar passar. Precisava, carecia mandar aquele asqueroso e desprezível para o espaço.
- Senhor, senhor... Me escuta. Gatos...
Juvenal foi interrompido:
- Vai acontecer uma tragédia. É o fim... É o fim...
- Como assim, senhor? Olha, vamos resolver de outra maneira. Me passa seu endereço...
- Como?
- Me passa seu endereço. Afinal, quem está falando?

Em reposta, inundou o ouvido de Juvenal um aterrador grito de socorro:
- Se... Seu po...Poli... Policial, por tu... Por tudo quanto é mais sa... Sa... Sagrado...
Juvenal, igualmente se atemoriza, se estarrece, se  assombra.
- Amigo, como é seu nome? Com quem estou falando?
Do outro lado, a voz, agora aos brados e berregues, consegue apenas emitir clamores de sufocação e flagelação.
- Amigo... Amigo... Com quem estou falando?
À voz embaragda, num último lampejo de morte, faz a revelação:
- É... É... É... O papagaio.
Os ruidos que chegam a seguir, deixam Juvenal estarrecido e sem voz.  
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha,  Espírito Santo. 1-5-2020

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Um comentário:

  1. Mal (bem) comparando, o papagaio representa o povo abandonado que lentamente sucumbe dentro da miséria a que é condenado. Os gatos são os ratos (políticos) fantasiados para se fazerem de fofos e conquistarem a confiança dos menos informados. Agora, para expulsa-los, precisamos de um bando de pitbuls. O problema é que estes atualmente são raros e acomodados.

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