As elites que deveriam nutrir e proteger as
artérias democráticas acabam por trair a democracia
Ana Paula Henkel
Quantas vezes durante a nossa
infância assistimos a filmes hollywoodianos que retratavam “o espírito da América”
em clássicos de guerra ou “o sonho americano” representado por atores como John
Wayne ou Clint Eastwood nos famosos westerns nas tardes e
noites de sábado?
A América, além de patriota, é
vista por muitos como defensora irrestrita da liberdade. Para outros, apenas
uma nação imperialista e arrogante. No entanto, quem passeia com honestidade
pela história dos Estados Unidos consegue entender que nem sempre o país foi
uma potência. Houve décadas de sangue e fogo, lutas, glórias e derrotas. Ainda
assim, e apesar de uma guerra civil que produziu marcantes cicatrizes, a nação
preservou o espírito patriótico dos Founding Fathers — não só em 1776, ano da
declaração de independência, mas durante todo o estabelecimento dos pilares
institucionais. Algo único sempre moveu o povo à prosperidade. Um profundo
respeito pela liberdade individual para o bem coletivo.
Embora o DNA do patriotismo
não tenha se perdido desde a espetacular vitória contra a Grã-Bretanha — na
época, uma grande potência militar —, a América sempre vivenciou diferenças
políticas e sociais. Mas, diante de inimigos comuns, essas diferenças eram
deixadas de lado. O povo norte-americano sempre reagia a tropeços históricos
trazendo para a superfície a força de sua genética de bravura, luta e união. Frente
a impasses que poderiam mudar a rota de seu excepcionalismo, a América sempre
reagiu.
Para muitos historiadores, no entanto, os últimos anos da política norte-americana e a eleição presidencial de 2016 solidificaram uma divisão no país que foi iniciada com o bom-mocismo de Barack Obama. O nível dessa fragmentação pode ter sido registrado apenas durante a Guerra de Secessão, quando, em meados do século 19, os Estados Unidos viviam uma era de tremendo crescimento com uma diferença econômica fundamental entre as regiões norte e sul do país.
No Norte, a manufatura e a
indústria estavam bem estabelecidas, e a agricultura mantinha-se principalmente
limitada a fazendas de pequena escala. Em contraste, a economia do sul era
baseada num sistema de agricultura em grande escala que dependia do trabalho de
escravos negros para o cultivo de culturas como algodão e tabaco.
O crescente sentimento
abolicionista no Norte após a década de 1830 e sua oposição à extensão da
escravidão aos novos territórios ocidentais levaram muitos sulistas a temer que
a espinha dorsal de sua economia pudesse quebrar. Forças pró e
antiescravagistas lutaram violentamente de 1861 a 1865. Assim, no Norte, nasceu
uma nova entidade política baseada no princípio da completa objeção à extensão
da escravidão aos territórios ocidentais, o Partido Republicano — a agremiação
política de nomes como Abraham Lincoln.
As décadas se passaram e o
Norte tornou-se uma região cosmopolita, hoje com grande maioria de eleitores
democratas. O Sul, escravagista e fiel aos confederados, homens que compunham a
massa do Partido Democrata na Guerra Civil, hoje é composto de fiéis eleitores
republicanos que há muitos anos “votam vermelho”, a cor do partido.
As diferenças ideológicas
foram recalibradas não apenas como áreas rurais ou urbanas — estabelecidas de
maneira muito clara desde a concepção da nação — mas também no que diz respeito
a questões como aborto, licença para porte de armas, impostos e política
externa. Republicanos, no passado estabelecidos em áreas de grandes cidades do
norte, hoje são demograficamente representados em milhares de cidades pequenas
nas áreas rurais. O progressismo ficou nas costas, nos grandes subúrbios e nas
áreas cosmopolitas.
Populismo como resgate da responsabilidade direta dos políticos
E é exatamente aqui, mesmo
ante a dificuldade de compreendermos o sistema eleitoral norte-americano, que
entra a bela engenhosidade do Colégio Eleitoral. Durante a última eleição,
vimos muitos jornalistas, por militância ou ignorância, tachar o sistema de
elitista e antidemocrático. Ora, o que seria de Montana, West Virginia, Utah ou
dos fazendeiros de Wyoming sem o sistema? Acabariam politicamente castrados e
esmagados por Califórnia, Nova Iorque, Boston e Filadélfia. A ideia de um
colégio eleitoral, Estados que mandam seus representantes de acordo com a
população, é considerada escandalosamente “injusta” e terrivelmente
“antidemocrática” por acadêmicos e pela mídia. Como assim, um fazendeiro de
Montana ter a mesma importância e a mesma voz na direção do país do que
milhares de outros moradores colados no globalismo das cidades?
É preciso — sempre — ressaltar
que a América não é uma democracia pura. A América é a ideia do republicanismo
que salvaguarda exatamente as artérias da democracia, não permitindo que 51% de
uma população cada vez mais urbana e amontoada nas costas progressistas crie
leis sempre que desejarem sem considerar todo o resto do país.
Divisões ideológicas fazem
parte do mundo há séculos, mas talvez a atual sociedade esteja testemunhando um
dos períodos de maior animosidade no campo político. Em um palco cada dia mais
polarizado, a dicotomia parece ter sido estabelecida como traço decisivo no
cenário político não apenas dos Estados Unidos, mas em várias democracias ao
redor do mundo. Posições individuais e da própria mídia são cada dia mais
expostas — e a parte da imprensa que se traveste de “isenta”, mas doura pílulas
diárias de militância progressista, afasta-se do coração da nação.
Em um momento político global
de quebra de paradigmas e narrativas, no qual o monopólio da informação não
mais existe, apesar das tentativas incansáveis das Big Techs de suprimir
importantes notícias, fica cada dia mais evidente que muitos analistas e
jornalistas ainda não conseguem entender a voz das áreas rurais, cada dia mais
reverberante. O descolamento das chamadas “classes falantes” e elites
progressistas do senso comum expressa a desconexão da realidade, o desprezo
pela verdadeira ideia de democracia — felizmente professada pelos que teimam em
não seguir suas ordens.
Parte dessa elite atual,
formada em sua grande maioria por esquerdistas, impregnados com a
autodenominação de justiceiros sociais, perdeu completamente o elo com o povo.
O movimento, hoje percebido por qualquer pessoa que tenha acesso à internet,
foi muito bem descrito no necessário livro The Revolt of the Elites and
the Betrayal of Democracy (“A Rebelião das Elites e a Traição da
Democracia”), do crítico social e historiador norte-americano Christopher
Lasch.
Neste que foi seu último
livro, publicado postumamente em 1995, depois de sua morte, em 1994, o
sociólogo descreve um princípio da filosofia política identificado adiante, em
2016, no referendo do Brexit e na eleição de Donald Trump nos EUA e, em 2018,
na vitória de Jair Bolsonaro no Brasil. Um movimento que, mesmo com a estranha
eleição de Joe Biden, carregada de dúvidas e incertezas, mostra que pontos
comuns entre grupos rurais e urbanos deixaram de ser a regra e, com raras
exceções, perderam seu protagonismo e poder de união. As diferenças, hoje,
falam mais alto.
“A Rebelião das Elites” é um
ensaio impiedoso contra a atuação de alguns segmentos elitistas da sociedade e
vem carregado de observações e dados esclarecedores, fundamentais em tempos de
análises jornalísticas embasadas em pura “achologia”. Lasch mostra um movimento
populista — muitas vezes iniciado em áreas rurais que celebram a meritocracia
—, sem dar à palavra o tom pejorativo. O movimento consiste na tentativa de
resgate da responsabilidade direta dos políticos perante a sociedade,
principalmente com aqueles que não vivem nas bolhas urbanas, supostos grandes
centros de justiça social.
O princípio político de Lasch
é que as elites, que deveriam cumprir o papel de dar o exemplo moral e
intelectual, se enclausuram em seus mundos ao ver suas vontades políticas não
se concretizando. Assim, revoltam-se contra a própria sociedade civil. Exibem
um comportamento similar à rebelião das massas que José Ortega y Gasset
descreve no clássico livro da década de 1930 — o título do livro de Lasch, a propósito,
é uma ironia ao também necessário Rebelião das Massas, de Ortega y
Gasset. O sociólogo descreve como essas elites foram se trancando em suas
torres de marfim, manipulando e manobrando a informação e o conhecimento ao
longo de anos. A brilhante provocação de Lasch é exatamente esta: as elites que
deveriam nutrir e proteger as artérias democráticas acabam por trair a
democracia (subtítulo do livro). Elas não conseguem disfarçar seus discursos
tirânicos e autoritários.
O que pensa a intelligentsia —
segundo Lasch, composta de partidos políticos, grandes veículos de comunicação,
universidades e intelectuais — engloba uma série de opiniões unicamente
enquadradas no que ela acredita ser melhor para todos. Todos. Inclusive os
fazendeiros e moradores das áreas rurais de metade da América. Lasch é enfático
ao descrever o comportamento como uma espécie de tirania que sufocou o cidadão
comum. O nojo e o desprezo dessas elites aos milhões de fazendeiros e cidadãos
de classe média que votaram em Trump, à classe trabalhadora que vota em
conservadores para suas legislaturas estaduais, ficam mais latentes e
impossível de ser mascarados com o forte movimento de adesão a pautas
conservadoras, a verdadeira espinha dorsal norte-americana.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista Oeste, nº 39, 18-12-2020
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