Se a trupe no poder tem nojo de nós, convinha termos nojo deles. Enquanto não retribuirmos o sentimento, a humilhação não cessará de aumentar. Rir do médico das compotas não nos redime desta vergonha.
Alberto Gonçalves
Após nove meses diariamente expostos à ministra que ouve o “Hino da Intersindical” no chuveiro e se comove com as maravilhas estatais, do secretário de Estado que começa as frases por “Dizer que…”, da senhora da DGS que não sabe o que diz e diz o que lhe prescrevem, e de um rapazinho que em tempos a DGS lançou para arriscar um “póssamos” e um “fáçamos”, Portugal descobriu enfim Portugal. Não, não é a solução do problema identitário da nação. É apenas um dr. Rui Portugal [foto], que substituiu a dra. Graça para que esta pareça menos absurda. Fisicamente, é memorável, um boneco do Monopólio sem cartola nem dentista. A retórica dele, língua de trapos incluída, é incomparável.
Há dias, o dr. Rui Portugal
apresentou as “regras” (juro) para a quadra, “em que temos que nos
adaptar aos novos tempos e à situação pandémica em que vivemos. E por isso
mesmo é que devemos ter o cuidado de planear com cuidado juntos dos nossos no
sentido de melhor sabermos as condições de cada um, das regiões em que
habitamos e da especificidades daqueles em que nós mais queremos, daqueles em
que nós mais amamos.” A clareza não carece de comentários.
1.
“Em primeiro lugar, considerar que devemos
cumprir todas as regras que estejam em vigor e em vigência nesses dias e nesta
quadra que irá já se realizar na próxima semana.” É engraçado a
primeira regra incluir, logo dispensar, todas as seguintes. Mas quem tira aos
senhores da DGS a verborreia, tira-lhes tudo. Literalmente: é que não sobra
mesmo nada.
2.
“Uma regra muito básica: se estiver doente,
se conhecer ou algum dos seus familiares estiver doente (…), essas pessoas
todas deverão cumprir as regras que lhes foram estipuladas.” Tradução:
a segunda regra, que não é uma regra, repete a primeira regra, que também não é
uma regra, e torna inúteis as oito regras posteriores, que não obstante o dr.
Rui Portugal descreve em pormenor porque lhe pagam e ele gosta de fingir que
serve para alguma coisa.
3. Reduzir os contactos. “Em vez de eu ter o meu número normal de contactos de 10 ou 15 pessoas, vou passar a ter um grupo durante esta temporada de 4 ou 5 pessoas.” Não se impede os contágios, mas pode-se orientá-los – e concentrar a respectiva carga viral – para os familiares e amigos que abominamos com maior empenho. Curiosamente, não há problema com o “número normal de contactos” mantidos diariamente nos transportes públicos, as 197 pessoas que nesta quadra encolhem para 196.
4.
Reduzir o tempo de exposição. “Em vez de
estarmos juntos 3 ou 4 ou 5 horas, vamos tentar estar juntos mas num tempo mais
limitado de 2 ou 3 horas, ou de 1 hora, o tempo que for aprazível em termos dos
contactos.” Além disso, há que aproveitar “os jardins”,
ou “os magníficos espaços exteriores, com o clima que este país é
privilegiado relativamente a muitos outros nessa nossa Europa”. Dado que,
de Chelas a Rio Tinto, quase todos os portugueses vivem em domicílios similares
a Seteais, a questão dos jardins não será problema. E a questão do clima também
não: para a noite de 24, prevê-se no interior do país o privilégio de 5 graus
negativos, por contraponto a Estocolmo, com uns temíveis -1 ºC. Lá se vai a
estratégia sueca.
5.
Reduzir os contactos com a família
alargada: “Devemos reduzir, o máximo que pudermos, os contactos com
nossos familiares, mas que não são nossos habitantes.” O universo em
causa contempla “irmãos, pais, sobrinhos, tios”, além de “amigos
que, eventualmente, possamos ter e deveremos ter”. Suspeito que os senhores
da DGS têm tantos amigos quanto noções do seu idioma nativo. E não é à toa que
se fartam de prescrever o “confinamento”: essas criaturas são tão estimulantes
que só por força da lei os familiares os aturam. Já os familiares que não são
“nossos habitantes” fogem deles há décadas, numa demonstração exímia de redução
de contactos.
6.
Limitar os contactos ao “agregado familiar com
quem se habita”, talvez para o distinguir do agregado familiar que mora longe
de nós. Os demais contactos devem acontecer por “meios digitais,
computador, por telefonemas, por visitas rápidas no quintal de uns e de outros,
no patamar das escadas do prédio, com uma troca simbólica de uma compota que um
fez ou de algo que seja aprazível.” Compotas? Têm de ser compotas? E
caseiras? E os sabores, ficam ao nosso critério ou a DGS publicou uma lista?
Alguém, excepto os conhecidos do dr. Rui Portugal, oferece compotas de prenda
natalícia? Se calhar são um progresso evidente face às peúgas, ou algo
aprazível, que em criança lhe davam. Agora o dr. Rui Portugal deu-me pena.
Antes pena que peúgas.
7.
Manter sempre o “distanciamento físico” (distância,
em português). E, atenção, há que ter especiais cautelas com as cozinhas,
que “nesta altura serão locais de alto risco, visto que são os grandes
espaços de convívio entre pessoas e familiares.” É triste a distinção
entre “pessoas” e “familiares”, decerto uma referência velada àquela cunhada
cuja conversa vai sempre, sempre, sempre parar aos jogos de cama, e nunca,
nunca, nunca envolve traquinices sexuais, mas paleio alusivo a lençóis. Mais
triste é o progressivo encolhimento dos cenários: dos jardins passamos aos
quintais, dos quintais ao patamar do prédio, e entretanto já estamos todos
empilhados na cozinha, fatal antecâmara da marquise.
8.
Fazer circular o ar e desinfectar as
superfícies, “mais uma forma de estarmos um pouco melhor protegidos.” Grandes
ideias. Abrir as janelas modera a sudorese do primo Arlindo, que tipicamente
irá violar inúmeras regras e descarregar as compotas na mesinha do televisor.
De brinde, o ar fresco, aliás gelado, presenteará os convivas com uma pneumonia
comum, conquista que enxovalha o vírus da Covid. Quanto a espalhar álcool-gel
pela aletria e pelo bolo-rei, só pode incrementar o sabor de semelhantes
mixórdias.
9.
Lavar as mãos, respeitar a “etiqueta
respiratória” e, não esquecer, andar de máscara “em espaços
fechados e mesmo em espaços interiores”. Um espaço fechado e exterior é
exactamente o quê? Uma ilha? Um estádio? Uma piscina? Um campo de reeducação
para insubmissos do confinamento e do internamento profilático? Qualquer
explicação remete-nos para “os vídeos da DGS, que tão bem explicam e
portanto revisitem estes vídeos nesta quadra em que muitos de nós poderão ter
um pouco mais de tempo”. Eis uma boa sugestão para ocupar o ócio dos
feriados. Entre aturar parentes mascarados à entrada de casa e passar uma tarde
no sofá a “revisitar” vídeos educativos da DGS, a escolha é óbvia.
10.
Evitar a partilha de talheres e copos, incómodo
que obriga ou à mariquice de distribuir um conjunto de utensílios por cada
conviva, ou a comer com as mãos e beber pela garrafa. Beber, vírgula: “Escusado
será dizer que se pretende nestes convívios uma utilização moderada e racional
de tudo o que possam ser substâncias que possam trazer maiores afectividades.” Ou
seja, a DGS sabe, imagina-se que por experiência própria, que na consoada o
pessoal tende a enfrascar-se e terminar aos abraços, aos apalpões ou aos
tabefes, actividades que naturalmente estimulam o vírus. A alternativa implica
suportar o serão e os familiares a seco, o que, pelo menos no caso dos
familiares do dr. Rui Portugal, será um suplício muito superior ao internamento
em UCI.
11.
(regra de bónus) “Não é obrigatório que
o Natal se comemore, neste país, na ceia de Natal. Pode-se comemorar, num
momento de excepção, num almoço de Natal.” É como o Ano Novo, que pode
ser comemorado num lanche a 19 de Março. E como os aniversários, cujas velas
podem ser sopradas cinco ou seis anos depois. E os enterros, a realizar em data
aleatória que os cadáveres não têm pressa.
O discurso do dr. Rui Portugal
prosseguiu indefinidamente, a ironia fica por aqui. Peço desculpa, mas não me
apetece continuar a legitimar figuras de urso com figuras de estilo. Não falo
do médico das compotas. O dr. Rui Portugal, coitadito, é um mero sinal, um
sinal que os donos disto enviam para nos esclarecer de que já não há limites
para a prepotência. Atiram o homem, suposto representante da ciência
(desculpem), para brincar connosco e provar que somos um brinquedo nas mãos dos
que de facto mandam. O povo costuma usar a palavra fantochada, embora raramente
perceba quem são os fantoches.
Não se trata da Covid nem do
SNS nem da saúde pública nem das festanças, não por acaso permitidas aos
titulares do regime. Trata-se de pura exibição de autoritarismo. Há muito que
as experiências empreendidas por Costa, Marcelo e Companhia Ilimitada excedem o
ridículo, inevitável e compreensível em nulidades, e assumem o descaramento.
Ridículo é por exemplo o dr. Costa tropeçar na língua e na lógica (“Devemos
procurar evitar estar à mesa o tempo estritamente necessário…”). O descaramento
é tropeçar no direito e achar-se habilitado a decidir o comportamento dos
cidadãos. E o pior é os cidadãos consentirem. Os cidadãos consentem e aplaudem
o enxovalho e a punição dos resistentes ao enxovalho. Não deviam: se a trupe no
poder tem nojo de nós, convinha termos nojo deles. Enquanto não retribuirmos o
sentimento, a humilhação não cessará, e não cessará de aumentar. Rir do médico
das compotas não nos redime da situação vergonhosa em que caímos. Na comédia
proporcionada por gente grotesca, os espectadores são o alvo da chacota. E essa
é a tragédia.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
19-12-2020
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