Carina Bratt
NA SALA PRINCIPAL, ‘ABAPORU’, uma tela famosa de Tarsila do Amaral descansa ao lado da ‘Estudante’, de Anita Malfatti. O resto do aposento, tomado por tranqueiras comuns (a maioria cupinizada pelos insetos que já residem naquele espaço desde tempos imemoriais, ou mais precisamente dos anos devorados pelo calendário), de tão velho e carcomido lembra o Pão de Açúcar quando nem sonhava em ter um bondinho dependurado em sua estrutura original. Numa sala contígua maior um pouquinho que a primeira, um sofá acantonado, serve de porto seguro para a galera se sentar e espiar para o aparelho de televisão e às vezes, o DVD.
Por falar nele, o pequeno Eros assiste 'Percy Jackson e o ladrão de raios', com Logan Lerman e Sean Bean no papel de Zeus, o deus mais poderoso de toda a mitologia grega. Esta é a vigésima vez (só hoje) que ele reprisa o filme. Ao lado de Eros, a pequena Sofia, enfastiada, queima o tempo com um copo de refrigerante na mão, pela metade e, entre os dois, uma bacia com restos de pipocas saídos do micro-ondas há mais de duas horas. No ar parado, uma bulha vem de fora com tudo. Entra pela janela, atrapalha o silêncio juntamente com um pitium produzido pela fumaça dos cigarros tragados pelos pais das crianças que conversam aconchegados num canapé azul claro logo ‘quase ali’, disposto no varandão comprido em derredor da casa.
Maria Gorda, a velha preta cheia de atarefas na cozinha, parece ter saído de uma sapituca recente, tamanha a pachorra que lhe corroí a carcaça estropiada. Se pudesse, a gosto de sua vontade, o direito de escolher, fugiria para a sua camarinha nos fundos da residência e deixava que a alma despenhasse por uma vereda intransponível, onde a vida se acalmaria junto com o seu destino fatigado e hostil. Mas, bem sabe, não tem como. O jantar dos patrões será servido dentro de, no máximo, uma hora e ela não pode imprimir delongas às panelas que fumegam nas seis bocas do último tipo de fogão de marca famosa que chegara a menos de uma semana.
De frente para a tevê, as crianças seguem às voltas com o filme,
catalépticos no seu enredo. Na varanda, marido e mulher absorvem, à relho
solto, um papo sem fundamento, desfraldado de qualquer tipo de emoção maior,
tanto que as palavras, soltas ao acaso, dão loopings fantásticos em meio à fumaça
branca e fedorenta que sobe das piteiras douradas em direção a todos os cantos.
Em meio as partículas sólidas dos cigarros que se propagam e se perdem pelos
estuques mal rebocados, olhares inócuos se misturam enraizados num brilhar sem
cor, enquanto o tempo vagabundeia à mercê do acaso, sem o ralho de qualquer
coisa sólida que possa ser absolvido como normal.
E o tempo passa invariavelmente inflexível. O filme das crianças corre à
pouco do final. Na varanda, mais uma rodada de cigarros é acesa. Maria Gorda, a
velha cunhã que em tempos idos fora escrava de outra família abastada, lá para
os lados de Niterói, acabou de preparar a mesa e, agora, só falta convocar o
povo para que se aprochegue do móvel, cada um na sua respectiva cadeira
preferencial. Quarenta minutos depois, enfim, todos aboletados se juntam para as refeições, todavia, se
fartam num encontro que pesa. Eros só aprecia filmes tidos pela irmã como
‘idiotas’, sendo contraditado veementemente por Sofia que adora romances de
amor.
Seu Machado, cabeça do casal, pede ‘bocas-fechadas’, observando que na
hora das refeições não se deve ‘discutir picuinhas’. Maria Gorda afastada num
canto, ao lado de uma cristaleira
do tempo em que se pegava moscas nos tapas, segue atenta. Qualquer chamado se
fará presente antes que dona Giselda pisque seus olhos cor de esmeralda que
ainda seriam capazes de hipnotizarem a estátua de bronze de Freddie Mercury na
distante Montreux, na Suíça. Maria Gorda não gosta de dar seus direitos, nem
ser chamada a atenção. Tanto anos, naquela casa, e a sua vidinha medíocre
continua insossa. Sem cor, sem cheiro de melhoras, sem perspectivas de um
amanhã de felicidades plena.
Para ela, o tempo parou numa determinada intermitência do caminho
percorrido. E não seguiu em frente, não deslanchou, não bateu asas, apesar das
promessas que faz com assiduidade de latejar os joelhos no chão frio do seu
mísero quadrado no final da área de serviço à Nossa Senhora Protetora dos
Esquecidos da Vida e das trocentas velas que acende no cruzeiro construído no
alto da favela da Rocinha (toda vez que consegue ir até seu barraco) para seu
Anjo de Guarda. Entra dia, sai noite, entra semana, sai mês, entra ano, passam
as horas e nada progride. Na verdade, tudo segue numa monotonia de tirar o sossego.
Eros, Sofia, dona Giselda, seu Machado. Por ali, nada muda, nada prospera.
O tempo, o tempo sempre o desgastado tempo, tempo a se perder de vista, nas vistas
cálidas das noites intermináveis, que se agigantam como velhos fantasmas, além
das portas e janelas de acesso ao imenso casarão. O imóvel se avoluma num
prédio antigo e imponente, no bairro das Laranjeiras (perto do Palácio
Guanabara, sede oficial do Governo do Rio de Janeiro), com um bocado de
quartos, todos com múltiplas janelas, revestidas em madeira de lei. A
edificação ostenta ainda, apesar dos janeiros nos costados, na estrutura
externa do telhado, por exemplo, pequenos rastros da modernidade. Fora coberto
com telhas vermelhas recém trocadas enquanto o imenso quintal se fez invadido
por uma porção de câmeras de monitoramento.
O resto... O resto segue inexorável, ou pior, levemente encurvado num
ontem desfalecido, morto e enterrado. Talvez, por conta disto, o Presente tenha
medo de chegar e entrar ultrapassando o sisudo portão. E se sentir, transposto
seus ferros retorcidos, verdadeiramente em casa. Afinal, para ele, bater a
cabeça numa das vigas que seguram o teto do edificio centenário, poderia lhe
causar sérias contusões a depois. Seria, a bem da verdade... Seria, a bem de tudo mais, um Presente
literalmente truncado e doente. Que Futuro teria coragem e audácia para lhe
sorrir??!!
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha no Espírito Santo, 20-12-2020
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