terça-feira, 29 de dezembro de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Ontem, ainda...

Aparecido Raimundo de Souza

ONTEM, AINDA, EU ACREDITAVA que havia um caminho. Uma senda desconhecida, imaginariamente virgem, a ser seguida, sem a pressa dos meus medos, sem a confusão espectral que assola a minha cabeça, sem os dissabores e transtornos, anojamentos e abominações que insistem em me fazer um cara completamente sorumbático e infeliz. 

Ontem, ainda, lendo meus pensamentos como um jornal aberto, eu pensava em recomeçar. Mas recomeçar de onde? Exatamente de qual lugar? Do nada, do pó, do chão, do barro, apesar de ter perdido tudo? Quem sabe a resposta fosse esta: sim senhor, do pó, do chão de barro... É somente isto que lhe resta agora...

Quem dera, ressuscitar, reverdecer, começar de algum ponto obscuro, longínquo, fora do foco normal do cotidiano que deixei passar sem perceber, sem olhar com o cuidado devido para as portas que se abriam às oportunidades. Oportunidades que estavam bem ali, bem aqui, na minha frente, quase atropelando meu nariz.

Por algum motivo inexplicável, eu não as vi. Não as enxerguei. Quem sabe, levado pela imbecilidade do meu desespero vultuoso e mórbido, pela minha falta de parar, pensar e refletir, quem sabe, por conta disto, todas as possibilidades de melhora, de enobrecimento e elevação, todos os benefícios atrelados se esvaíram como fumaça.

Nada restou para um segunda chance. Foi como se tivesse recebido uma sentença condenatória do destino. À coisa alguma, pois, me apego agora, para tentar um recomeço. Minha resistência às adversidades está a zero. De contrapeso, parece que uma negridão interna, momentânea, provisória, fugaz e passadiça, me tolheu às vistas. Me deixou cego. Percebo, passado o tempo, havia um desvão e nele, uma luz que aclarava a escuridão.

Todavia, sequer me dispus a parar, a empacar a burrice, a refletir esmiuçadamente, a ruminar, a magicar ou sopesar os prós e contras, ao menos especular numa maneira de sair, de fugir, de me ver livre e liberto daquela loucura introspectiva que me fazia olhar só para dentro de mim mesmo. Isto, hoje, me causa desanimo, me esmaga uma tribulação amofinada que se converte em soluços.

Em nenhum momento, confesso, me veio à cabeça procurar um canto sossegado, de paz acolhedora, onde, realmente, pudesse estar me esperando uma escapatória, um subterfúgio, uma brecha confiante, tipo uma tábua de salvação, e, com ela, a chance de ter de volta, numa rota segura, a esperança de vencer os receios e me edificar, me soerguer, me alçapremar... Enfim, me reconstruir e me remontar enaltecido e novamente dono da situação.

Ontem, ainda... Ontem, ainda, eu quis dar um tempo diante de todos os meus dissabores e fracassos, decepções e agruras, estorvos e flagelações. Delongar, declinar, sobrestar, retroceder, dar a volta nos meus próprios passos perdidos e descobrir onde deixei ficar jogada, ao léu, a minha Felicidade, o meu albume para fertilizar a semente do meu coração e, junto com ele, vislumbrar um amanhã melhor.

Ontem, ainda, Meu Pai!... Ontem, ainda, eu me sentia forte e opulento, robusto e vigoroso, sobretudo, revigorado e fornido. Meu corpo, neste exato momento, parou de responder às minhas vontades. Por azar, meu 'eu interior', se calou devido a uma fúria inóspita e sem razão inexplicável, que acabou sucumbindo à covardia.

Ontem, ainda, eu era, completo, sem falhas, autossuficiente, primoroso, refinado, pleno e magistral, de bem com o mundo, a vida me fazendo uma criatura alegre; saltitando ao meu redor; pulando contente; dando peruadas e o melhor de tudo; me mantendo interligado com uma visão beatificada; vinda diretamente da ternura mansa dos braços aconchegantes de Deus.

Desta sorte, no extremo oposto, eu, aqui, subjugado pela minha inércia, preguiça e indolência, bem ainda colado à frouxidão e ao marasmo, nada, nada entretanto, ocorreu. Simplesmente eu me fechei em copas. Cerrei os passos, ocultei meu lado alegre, tranquei, a sete chaves, dentro de um ostracismo infame tudo aquilo de bom que a natureza me deu de presente.

Prendi, igualmente, a minha liberdade de existir em toda a sua plenitude, dentro de muros altos e intransponíveis... De repente, me senti como se fosse um animal furioso buscando destruir as coisas que eu nem saberia descrever o quê.

Foi então que, do nada, uma voz se fez ouvir: ‘não desista, não esmoreça. Esbraveje, grite, berre, lute’. Olhei para todos os lados, incrédulo, pensando ver alguém conhecido. Um amigo, um parente... Quem sabe um estranho, qualquer criatura que percebendo a minha tristeza sofrente, angustiante e fora de propósito, tentasse me dar uma injeção de animosidade me botando a carcaça com todos os pesares, para cima.

Espiei, olhei, olhei e espiei. Uma, duas, cinco ou seis vezes mais. Nada vi, nada captei, a não ser a minha pulsação desenfreada dentro do peito, como a hora do rush das multidões. De roldão (apesar da voz quase me implorando), prevaleceu, predominou o obscuro, o sombrio, o tenebroso refletido nos olhos esbugalhados do futuro, perscrutando atoleimado, o infinito distante, afastado e insulado que se postou, incontinente, diante de mim.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha Espírito Santo, 29-12-2020

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Tudo assim, do nada, como se fosse uma segunda chance
Dois Natais completamente distintos....
De ergofóbicos e ergofobias
A garota do trem

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