Aparecido Raimundo de Souza
De repente
—, eu que vivia intensamente cada minuto da minha vida, que dormia duas ou três
horas por noite —, que amanhecia em farras e regozijos com os amigos, ora
tomando cerveja pelos bares das redondezas, ora envolvido em prostíbulos com
vadias em busca de gastar dinheiro fácil, entre outras mediocridades, sem que esperasse
outra coisa mais séria por esta mudança brusca que fiz por vontade própria, me
vi, ou pior, me fiz, me peguei, me flagrei assim, tolhido, cerceado, impedido,
acorrentado, preso e atado a um congestionamento inexplicável tal como se
enfrentasse um trânsito caótico dentro de uma cidade enlouquecida e não
conseguisse encontrar uma rota de fuga viável para escapar para lugar nenhum.
Não só me
vi, me vejo ainda agora, meio abestalhado, impedido, ferido na minha
autoconfiança, igualmente paralisado, num incidente sórdido, sem saída,
encarcerado como um inativo, às portas de um desconhecido trivializado,
obscuro, como se tivesse sido agarrado por fortes mãos de um ser misterioso que
surgiu do nada e, sem que esperasse, se postou diante do meus passos e caminhos,
me impedindo de seguir adiante, de deslanchar, de dar, sequer, um simples salto
quântico na compreensão incompreendida dos neurotransmissores dos meus desejos
mais prementes e tempestuosos. Cresceu, por conta, um turbilhão de emoções
conflitantes e, por causa deles, me rodeiam até agora, imagens de um pavoroso
espectro cujo rosto mascarado não me permitiu vislumbrar a sua face.
Que loucura! Eu que beijava bocas e chupava línguas de gostos diferentes, que aprontava com tudo e todos, que jogava bola com os moleques da rua do bairro onde morava, que pegava praia no Arpoador e, a noite, caminhava com a turma de conhecidos de um extremo a outro da Avenida Atlântica, agora estou aqui. Me pego inerteado, deitado feito um babaca, os olhos arregalados, perdidos dentro de um nada vazio e oco, fustigado neste lugar imundo, fétido, asqueroso, vendo as horas passarem, os dias nascerem e morrerem, as noites irem e voltarem, sem que nada de novo ou de normal dentro do anormal que se instalou, simplesmente aconteça.
Meus
vizinhos, estes, coitados, parecem empanturrados de uma solidão infame, mais
estressante que a minha. Talvez, por isto, os veja assim, como a um bando de
fantasmas errantes assustados com a estupidez aguda que os alimenta. Para se
ter uma ideia, o cidadão do meu lado direito reclama das cachaças que não
poderá mais beber. A jovem do lado esquerdo buzina o tempo todo em meus ouvidos
a desdita de ter perdido a perna num acidente de moto. ‘Juro que se meu
namorado aparecer aqui, agora, eu aperto o pescoço dele até botar meio metro de
língua pra fora da boca’.
A outra
criatura que está logo atrás de mim é uma menina de quinze anos e, apesar de
muito nova e imatura, passa o tempo todo se lamentando debulhada num vale de
lágrimas, maldizendo o homem desconhecido lhe lhe estuprou, quando voltava para
casa, depois de passar a noite inteira com as amigas, numa balada. O morador da
frente é mais complicado. Meio sádico inconsciente. Trata-se de uma bicha
enrustida. Fala o tempo todo se desmilinguindo. Desmunheca pior que largatixa
quando cai da parede. Pegou AIDS do companheiro com quem morou cinco anos e
meio e, pelas proezas que me conta, o companheiro arranjou outro parceiro e
meteu-lhe os pés no traseiro. Pelos impropérios que propaga a altas vozes, o
miserento não parece flor que se possa ser cheirada.
Já não
quero falar dos que estão residindo em quadras mais abaixo. Na verdade, cada um
destes meus prezados, que dividem este espaço não tem lá muitas opções de
existência. Aliás, por aqui, a existência é quase abissal. Por esta razão, as
particularidades de cada um servem de padrão para os demais. Resumindo: somos
todos uma imensa família de cadáveres ambulantes navegando no mesmo barco, à
procura da um porto seguro onde descansar a exaustão que nos definha o corpo e,
de contrapeso, corrói nossas carnes até a consumação dos ossos.
No
entanto, às vezes, me ponho a pensar com meus botões: ontem mesmo... Ontem
mesmo a minha vida se fazia boa, alegre, divertida, animada, apesar do trabalho
cansativo, dos perrengues que passava, no ir e vir para a empresa. Meu Deus!
aqueles ônibus lotados, com pessoas fedendo a suores fortes, exalando ao
entorno dos demais que viajavam, odores que davam a impressão de cachorros
molhados, hoje me fazem falta. Havia, de contrapeso, uma multidão gritando,
outros gatos pingados fumando ou se queixando da sorte, sem mencionarem o
salário merreca e os sonhos futuros que pretendiam realizar, porém, nunca
sobrava um centavo para fazerem um cego das orelhas cantar qualquer coisa de
Roberto Carlos ou Amado Batista.
Pois é!
Que mudanças brusca promovi. Hoje estou aqui! Esquecido, abandonado, ao léu.
Virei pó. Ontem —, ontem eu podia ver o mar, olhar o céu azul, andar na chuva,
correr entremeio aos carros, desafiar a sorte, sentir o vento, a beleza das
praças e jardins, podia ouvir o cantar dos passarinhos... Ontem eu conseguia
abraçar meus filhos, meus netos, sair com eles para comer pipocas na pracinha
do Lido, ou pegar uma seção pornô no cine Odeon, na Alvaro Alvin, na
Cinelândia.
Do mesmo
modo, visitar meus parentes, muito embora fosse um pouco rejeitado pela família
— apesar disto, mesmo me sentido solitário no recôndito dos meus pares, algo me
enchia de prazer e acelerava meu coração de alegrias. Apesar de viver com a
tristeza colada nos pés e um punhado de melancolias pesando na aba do meu
chapéu, ia vivendo, ia tocando, ia aprendendo.
Havia uma
luz muito fraca, lá longe. Apesar de distante, ela se revestia de uma
‘meia-esperança’ imorredoura e, por vezes, quando à vontade de acabar com a existência
inócua apertava, me atropelavam ideias macabras e mirabolantes, como, por
exemplo, dar um tiro de trinta e oito de misericórdia bem no meio da cabeça.
Nestas
horas, esta luz tênue quase a se esvair em pesadas nuvens, parecia ter o dom
mágico de fazer algo surgir do nada e de transformar tudo em derredor num
suntuoso e indescritível clarão divinal. Este clarão batia em meu rosto como
uma promessa de dias melhores. No entanto, hoje, bem, hoje, não vejo mais esta
luz. Meus dias são eternamente iguais.
Não há
futuro, não há presente, não há amanhã. Na verdade, não há exatamente nada.
Coisa alguma elevada ao quadrado que opere o milagre auspicioso e restaurador
de fazer ficar tudo redondo, justo e perfeito. O grande caso é que estou morto,
virei extinto, me fiz cadáver falecido, defunto enterrado neste cemitério à
entrada da cidade. Ao meu lado, sepulturas e jazigos com velhos expirados
apodrecendo em descomposições que não estancam, as horas esperando, como eu, o
milagre de retornar à vida antiga, curtir novamente o mar infinito, o céu azul,
o vento calmo sibilando, e rever os momentos felizes que se perderam em algum
lugar dentro de mim...
...Talvez...
Sentar na mesa de um barzinho de frente para a praia de Copacabana e agradecer
ao Pai Maior pelo fato de ainda não estar com sete palmos de terra por cima dos
costados. Orar, igualmente a Ele, por compreender que tudo o que pensei estar
acontecendo comigo não foi além de um sonho placebo e tresloucado, apenas uma
visão apocalíptica embutida num lapso de certa forma meio macabro, um pesadelo
esquisito; medonho; sem contar de contrapeso; num futuro terrível que embora
incerto; suspeitoso, não chegou a ser verdadeiramente real. Queria por tudo
quanto é mais sagrado, queria agora, desejaria, as mãos postas em atitude de
prece, almejaria, não chegasse, jamais, a minha vez de partir.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo, 25-12-2020
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