— Pai, como faço para chegar ao inferno?
Pego de surpresa, e sem saber o que responder, de imediato, o pai procurou ganhar tempo:
— Para que você quer saber, meu filho?
— Curiosidade, pai.
— Essa ‘curiosidade’ tem nome?
— Sim senhor.
— E qual é?
— Professor Molejo.
— Que mal pergunte: quem é esse tal de professor Molejo?
— Meu professor de Educação Física. Ou pelo menos, era...
— Não entendi. Como assim, era?
— Tivemos uma pequena discussão na hora em que ele estava dando a aula para minha turma:
— OK. Por qual motivo vocês discutiram?
— Pai, eu pisei na bola. Juro para o senhor que foi sem querer:
— Como assim, pisou sem querer? Falou ou fez alguma coisa que não devia?
— Não, pai. O que aconteceu foi que chutei a droga da bola de forma errada. E a desgranhenta, ao invés de ir para o gol, desviou a rota, no meio do caminho e foi direta numa das janelas da diretoria:
— Tudo bem, meu anjo. Acontece! De outra feita procure não incorrer na mesma falha. Certos acidentes são inevitáveis. Uma vez, eu sem querer, confundi a sua mãe com a irmã dela, a sua tia... Deu um bafafá danado. No fim...
— No fim...?!
—...Tomei, de ambas, uns bons tapas no meio das ventas. Apanhei pior que burro fujão. Depois tudo acabou sem maiores consequências... Desde então, aprendi a distinguir, de longe e até no escuro, quem é a sua mãe e quem é a irmã dela, a danada da sua tia Luciana:
— Entendi. Também penso como o senhor, pai. Acidentes acontecem. Só que no meu caso, o professor Molejo me mandou para o inferno, e antes de ir para o inferno, me encaminhou direto para a sala da diretoria...
— ... E?
— Conta, filho? Que conta?
— Do vidro da janela que eu quebrei. Olhe aqui o recibo com as despesas do rapaz que foi lá e fez a troca:
— Inferno!
— Foi o que eu disse à diretora:
— Deixa eu ver...
— A parte mais dolorida vem agora, pai. Tenho que levar o dinheiro amanhã. Ou não assistirei às aulas:
— Inferno!
— Foi o que também disse quando sai da sala da professora Amaralisa:
— E qual foi a reação dela?
— A jararaca me disse para eu ir primeiro...
— Seja mais claro, filhote. Ir para onde?
— Pro inferno, pai. Onde mais?
— Que vadia, essa sua diretora. Deve ser uma mal amada:
Dia seguinte, logo que meteu os pés na escola, o moleque se viu direcionado por uma funcionária que parecia estar à espera dele, plantada feito um ás de paus no portão principal. A professora Amaralisa pegou o dinheiro, escreveu um recibo, carimbou com seu carimbinho de coordenadora. Entregou ao guri:
— Aqui está. De outra feita, procure ter mais cuidado ao chutar. Agora desapareça daqui. Sua professora de Português, a exatos cinco minutos, deu inicio à sua aula:
— Obrigado, dona Amaralisa. Desculpe o incômodo:
— Vá para o inferno, fedelho. Suma da minha frente, de uma vez, seu imbecil. E quando sair, por favor, não bata a porta. Detesto barulho.
***
Antes de fechar, de vez, a porta para se livrar do mau humor e da fúria da coordenadora, o menino completou:
— Se Deus quiser pretendo seguir seu conselho. Irei para o inferno. Nos veremos lá. Beijos, sua chata mal amada. Tenha um bom dia.
No término das atividades escolares, a mesma funcionária que o encaminhou à diretoria, quando do ingresso, lhe esperava, de olho comprido, no portal da saída. Logo que avistou quem procurava, pulou na frente do garoto com um sorriso sem graça e entregou uma cartinha endereçada a seus pais. Curioso, como toda criança, o piá não se aguentando, abriu e leu-lhe o conteúdo:
— E o que dizia a carta, meu filho?
O menino retirou a mochila das costas, tirou de dentro dela um envelope branco e o entregou ao pai:
— Veja, pai. É um comunicado simples, ligeiro e direto para o senhor e para a mamãe, avisando que tomei três dias de suspensão.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, 15-12-2020
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