sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Lados opostos

Aparecido Raimundo de Souza 

A MENINA TODA SUJA, os pés descalços no cimento frio, uma sainha curta, desbotada e em tiras, encimada por uma camisa-blusa com vários buracos à luz de uma lua clara, surge diante de mim, assim, do nada. Traz, nas mãos, umas flores de aparências estranhas e, a princípio, penso que pretendesse vendê-las em troca de algumas moedas. 

Humildemente ela se aproxima, me dirige um ‘boa noite’ vagaroso e pede ‘desculpas pela intromissão’. A minha mesa armada na calçada da longa avenida movimentada, junto com outras e, nelas, à distancias poucas, alguns gatos pingados bebem cerveja enquanto casais de namorados trocam afagos e permutam carícias espiando a escuridão do mar. 

Ela parece ter me colocado na sua alça de mira. Ao invés de se dirigir aos demais, ao entorno, prefere vir até mim. A peça que ocupo, está cheia de pratos e talheres, além de duas garrafas de refrigerantes, uma delas com metade da bebida que eu ainda me servia a goles moderados e duas bandejas com restos de batatas fritas e alguns pedaços de um churrasco no palitinho que eu pedi e enjeitei, em face de conter estilhas de gordura. 

Com a mesma simplicidade e candura que chega, e diante da minha negativa de lhe dar alguns trocados, a jovenzinha pergunta se eu me importo que ele pegue aquelas sobras. Aquiesço e ela rapidamente arremata o que eu deixei de comer e engole numa pressa de fome voraz intensa. Indaga, seguidamente, se eu ainda me servirei do restante do guaraná e também declino para que possa matar a sua sede. 

Em depois, num sorriso de satisfação me agradece e se vai embora. Desaparece tão silenciosa como chegou. Fico imaginando, com meus botões, como a vida, para alguns, se mostra hostil e sem razão, enquanto para outros, se exibe maravilhosa e gentil, mostrando um leque de caminhos diferenciados que acabam em horizontes floridos e auspiciosos. 

Para esta pobre criança, que acabou de sair do meu campo de visão, acredito ai, na casa dos treze, talvez menos, padece uma vida ingrata e infame, uma existência lhe lhe cai cruel todos os dias sobre os costados. Para mim, ao contrário, se mostra alegre e benfazeja. Olho para meus pratos vazios e penso em tudo o que o meu dinheiro pode comprar, ao passo que a miserável criaturinha carece ficar à deriva.

Purgando ao acaso do deus dará, indo e vindo, chegando e deschegando, implorando a um e outro alguma coisa que será jogada fora para colocar no estômago vazio e, com a voz áspera da maldita fome gritando severamente mais alta. 

Meu Deus!... Eu tenho o direito de me sentar aqui e ela, coitadinha, sequer se pode dar ao luxo, ao prazer, ou ao gosto de se acomodar num destes estabelecimentos montados ao longo da calçada à beira mar e espantar a orexia dolorosa e lastimosa que a atormenta e, via paralela, que esmaga e definha, corrói e deprava, de maneira contundente, as belezas da sua infância perdida. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha Espírito Santo, 4-12-2020 

Colunas anteriores:
Tarja com caveira
Mala sem alça
Encaixe perfeito
Deuses ou hipócritas?!
Língua presa
Foi suicídio
Somos todos uns mumbicas? Somos, sim senhor!

3 comentários:

  1. Um saudável retrato do cotidiano.

    Entre tantos termos rebuscados, um me pareceu impróprio.

    DEPRAVA!

    A miséria por si, não "deprava" ninguém , menos ainda a um inocente ser!

    No mais ,gostei!

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  2. Sempre encontramos crianças nas nossas saídas para jantares ou lanches noturnos. A mim me parece, como ser humano, que a cada dia elas aumentam, como se se multiplicassem como as estrelas num céu... bonito de ser contemplado sobre as nossas cabeças. O texto acima, de Aparecido, conta exatamente o calvário de uma delas. Já vimos, em outras ocasiões, em outras cidades, algumas serem aliciadas e outras, por conta de um prato de comida, ou de um lanche, entrarem em carros luxuosos e sumirem na poeira. De fato, as nossas meninas e os nossos meninos de rua, bem demonstram a desgraça cada vez maior e mais nojenta da nossa sociedade. A degenerescência dela, atrelada a hipocrisia enervante de nossas autoridades 'inoperantes e picaretas', a cada dia, se fazem maiores e mais acentuadas. É nestas horas que os pedófilos entram em ação. As perguntas que ficam: a quem reclamar? Cadê os ilustres representantes dos Conselhos Tutelares, ou melhor, os almofadinhas dos juizados de menores, para lembrarem que o ECA existe só no papel?!
    Carina Bratt
    Ca
    de São Luiz, no Maranhão

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