Aparecido Raimundo de Souza
A MENINA TODA SUJA, os pés descalços no cimento frio, uma sainha curta, desbotada e em
tiras, encimada por uma camisa-blusa com vários buracos à luz de uma lua clara,
surge diante de mim, assim, do nada. Traz, nas mãos, umas flores de aparências
estranhas e, a princípio, penso que pretendesse vendê-las em troca de algumas
moedas.
Humildemente ela se aproxima, me dirige um ‘boa noite’ vagaroso e pede ‘desculpas pela intromissão’. A minha mesa armada na calçada da longa avenida movimentada, junto com outras e, nelas, à distancias poucas, alguns gatos pingados bebem cerveja enquanto casais de namorados trocam afagos e permutam carícias espiando a escuridão do mar.
Ela parece ter me colocado na sua alça de mira. Ao invés de se dirigir aos demais, ao entorno, prefere vir até mim. A peça que ocupo, está cheia de pratos e talheres, além de duas garrafas de refrigerantes, uma delas com metade da bebida que eu ainda me servia a goles moderados e duas bandejas com restos de batatas fritas e alguns pedaços de um churrasco no palitinho que eu pedi e enjeitei, em face de conter estilhas de gordura.
Com a mesma simplicidade e candura que chega, e diante da minha negativa de lhe dar alguns trocados, a jovenzinha pergunta se eu me importo que ele pegue aquelas sobras. Aquiesço e ela rapidamente arremata o que eu deixei de comer e engole numa pressa de fome voraz intensa. Indaga, seguidamente, se eu ainda me servirei do restante do guaraná e também declino para que possa matar a sua sede.
Em depois, num sorriso de satisfação me agradece e se vai embora. Desaparece tão silenciosa como chegou. Fico imaginando, com meus botões, como a vida, para alguns, se mostra hostil e sem razão, enquanto para outros, se exibe maravilhosa e gentil, mostrando um leque de caminhos diferenciados que acabam em horizontes floridos e auspiciosos.
Para esta pobre criança, que acabou de sair do meu campo de visão, acredito ai, na casa dos treze, talvez menos, padece uma vida ingrata e infame, uma existência lhe lhe cai cruel todos os dias sobre os costados. Para mim, ao contrário, se mostra alegre e benfazeja. Olho para meus pratos vazios e penso em tudo o que o meu dinheiro pode comprar, ao passo que a miserável criaturinha carece ficar à deriva.
Purgando ao acaso do deus dará, indo e vindo, chegando e deschegando, implorando a um e outro alguma coisa que será jogada fora para colocar no estômago vazio e, com a voz áspera da maldita fome gritando severamente mais alta.
Meu Deus!... Eu tenho o direito de me sentar aqui e ela, coitadinha, sequer se pode dar ao luxo, ao prazer, ou ao gosto de se acomodar num destes estabelecimentos montados ao longo da calçada à beira mar e espantar a orexia dolorosa e lastimosa que a atormenta e, via paralela, que esmaga e definha, corrói e deprava, de maneira contundente, as belezas da sua infância perdida.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha Espírito Santo, 4-12-2020
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Deuses ou hipócritas?!
Língua presa
Foi suicídio
Somos todos uns mumbicas? Somos, sim senhor!
Belo texto ... avida como ela é.
ResponderExcluirUm saudável retrato do cotidiano.
ResponderExcluirEntre tantos termos rebuscados, um me pareceu impróprio.
DEPRAVA!
A miséria por si, não "deprava" ninguém , menos ainda a um inocente ser!
No mais ,gostei!
Sempre encontramos crianças nas nossas saídas para jantares ou lanches noturnos. A mim me parece, como ser humano, que a cada dia elas aumentam, como se se multiplicassem como as estrelas num céu... bonito de ser contemplado sobre as nossas cabeças. O texto acima, de Aparecido, conta exatamente o calvário de uma delas. Já vimos, em outras ocasiões, em outras cidades, algumas serem aliciadas e outras, por conta de um prato de comida, ou de um lanche, entrarem em carros luxuosos e sumirem na poeira. De fato, as nossas meninas e os nossos meninos de rua, bem demonstram a desgraça cada vez maior e mais nojenta da nossa sociedade. A degenerescência dela, atrelada a hipocrisia enervante de nossas autoridades 'inoperantes e picaretas', a cada dia, se fazem maiores e mais acentuadas. É nestas horas que os pedófilos entram em ação. As perguntas que ficam: a quem reclamar? Cadê os ilustres representantes dos Conselhos Tutelares, ou melhor, os almofadinhas dos juizados de menores, para lembrarem que o ECA existe só no papel?!
ResponderExcluirCarina Bratt
Ca
de São Luiz, no Maranhão