quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

[Diário de uma caminhada] António Damásio, ideologia de género e doença de esquerda

Gabriel Mithá Ribeiro

Anular os sentimentos para clarificar o raciocínio é uma crença comum, mas errada, uma vez que razão e emoção não são contraditórias nem compartimentos estanques. Tanto o excesso de emoções (cabeça quente) quanto a falência das emoções (cabeça fria) são fontes de comportamentos irracionais. Como o destino humano está repleto de incertezas, as emoções são componentes integrantes da razão funcionando como guias insubstituíveis da capacidade de agirmos com responsabilidade social e prevermos adequadamente o futuro.

Ensina-nos António Damásio, neurocirurgião que se refere à separação entre a razão e a emoção (entre o mental e o biológico ou entre a cabeça e o coração) como O Erro de Descartes (1994). O Penso, logo existo, em latim, Cogito, ergo sum, do filósofo René Descartes (Discurso do Método, 1637) marcou uma profunda viragem civilizacional do Ocidente. Deu início à subversão do olhar do ser humano sobre a sua própria condição, dado que os milhões de anos antecedentes de evolução da espécie evidenciam que o biológico precedeu o mental, se não tivesse havido corpo não havia cérebro, pelo que a revolução cartesiana impôs o inverso, a ditadura da mente sobre o corpo.

Os séculos seguintes encaminharam-nos para as sete quintas dos atuais radicalismos de esquerda, orientação mental exemplarmente espelhada na ideologia de género, o paroxismo do totalitarismo da mente sobre o corpo. Está em causa a ambição de autonomizar a identidade sexual do sujeito da sua condição biológica (nascer homem ou mulher nada determina) para colocá-la na dependência radical da mente.

Tal radicalismo é bem mais ousado do que René Descartes imaginaria no século XVII. A ideologia de género pressupõe que a identidade sexual do sujeito individual é uma construção social, é uma imposição da mente coletiva sobre o corpo social, porém não corrige a dissociação entre o mental e o biológico. Pelo contrário, dá um passo em frente desfiliando a suposta construção social da identidade sexual de tradições sociais e civilizacionais sedimentadas ao longo da evolução da espécie humana para impor um modelo alternativo de identidade de género. Este modelo não anuncia apenas que a cabeça pode e deve mandar totalitariamente no corpo, mas também que a cabeça individual ou coletiva pode ser aquilo que quisermos e decidirmos aqui e agora. O Erro de Descartes levado ao extremo.

Com o correr do tempo, o dogma cartesiano ultrapassou largamente o campo filosófico ou científico no qual surgiu para se sedimentar na vida social e cultural habitual, assumindo variantes crescentemente radicalizadas no campo das ideologias e das práticas políticas, até porque não existem descontinuidades entre o sujeito individual e o sujeito coletivo. O que temos hoje é uma doença civilizacional gravemente carente de uma terapia pós-cartesiana, ou mesmo anti-cartesiana, que tem na ciência ou na política os seus alvos por excelência.

É na perspetiva cartesiana que compreendemos a lógica racional ou estatística com que os governos, desde o século XX, se viciaram em orientar a vida dos povos, ao mesmo tempo que desprezam as tradições históricas e identidades seculares desses mesmos povos. É por isso que vivemos mergulhados numa distopia política por tomarmos como normal que os governantes alienem as emoções do sujeito coletivo ou os sentimentos dos povos, incluindo a sua religião e tradições seculares herdadas, para submetê-los à ditadura da razão universal ou globalista. Tal orientação mental conduz a erros inevitáveis no que se entende por responsabilidade social, como se a mesma não devesse obrigatoriamente incluir o respeito por emoções e sentimentos coletivos específicos de cada povo, assim como conduz a erros inevitáveis na perspetivação do futuro das sociedades.

Essa é a característica dos autoritarismos e totalitarismos de esquerda ainda vivos, enquanto à direita o vício ficou circunscrito a um espaço e a um tempo precisos, à Alemanha dominada pelo totalitarismo nazi (1933-1945), e não se prevê que venha a ter sequelas.

O fenómeno revela a persistência da tradição medieval, ainda que virada de cabeça para baixo. Na idade média (séculos V-XV) a religiosa (ou a emoção) cegava a razão e, a partir do século XVII, entramos na era da razão cegar a emoção, o que se tornou saliente com a Revolução Francesa (1789) e com a expansão de Napoleão (inícios do século XIX), porém o zénite foi atingido nos regimes totalitários do século XX, o comunismo (1917…) e o nazismo (1933-1945).

Recusar obstinadamente retomar as emoções positivas do sentimento nacional, teimar na recusa do patriotismo e o nacionalismo, reflete com especial clareza o prolongamento no tempo d’O Erro de Descartes contra o qual, no campo da ciência, António Damásio combate há três décadas. Na política, só a Nova Direita investe no mesmo caminho. A direita moderada e sobretudo a esquerda no seu conjunto, da moderada à radical, mantêm-se na senda cartesiana recusando-se respeitar a plenitude da condição humana, recusando-se admitir a complementaridade entre a razão e a emoção dos sujeitos coletivos, recusando-se reconhecer a função insubstituível da identidade dos povos historicamente instituída.

A disputa vai persistir enquanto a esquerda não estiver consciente da sua doença cartesiana, patologia mental que se designa por anosognosia. Recomendo vivamente a leitura de António Damásio que, na substância, coincide com o pensamento de Jordan Peterson.

Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Vice-Presidente do CHEGA!, 17-12-2020

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