Gabriel Mithá Ribeiro
Anular os sentimentos
para clarificar o raciocínio é uma crença comum, mas errada, uma vez que razão
e emoção não são contraditórias nem compartimentos estanques. Tanto o
excesso de emoções (cabeça quente) quanto a falência das emoções (cabeça
fria) são fontes de comportamentos irracionais. Como o destino humano está
repleto de incertezas, as emoções são componentes integrantes da razão
funcionando como guias insubstituíveis da capacidade de agirmos com
responsabilidade social e prevermos adequadamente o futuro.
Ensina-nos António
Damásio, neurocirurgião que se refere à separação entre a razão e a emoção
(entre o mental e o biológico ou entre a cabeça e o coração) como O Erro de
Descartes (1994). O Penso, logo existo, em latim, Cogito, ergo
sum, do filósofo René Descartes (Discurso do Método, 1637) marcou
uma profunda viragem civilizacional do Ocidente. Deu início à subversão do
olhar do ser humano sobre a sua própria condição, dado que os milhões de anos
antecedentes de evolução da espécie evidenciam que o biológico precedeu o
mental, se não tivesse havido corpo não havia cérebro, pelo que a revolução
cartesiana impôs o inverso, a ditadura da mente sobre o corpo.
Os séculos seguintes
encaminharam-nos para as sete quintas dos atuais radicalismos de esquerda,
orientação mental exemplarmente espelhada na ideologia de género, o paroxismo
do totalitarismo da mente sobre o corpo. Está em causa a ambição de autonomizar
a identidade sexual do sujeito da sua condição biológica (nascer homem ou mulher
nada determina) para colocá-la na dependência radical da mente.
Tal radicalismo é bem mais ousado do que René Descartes imaginaria no século XVII. A ideologia de género pressupõe que a identidade sexual do sujeito individual é uma construção social, é uma imposição da mente coletiva sobre o corpo social, porém não corrige a dissociação entre o mental e o biológico. Pelo contrário, dá um passo em frente desfiliando a suposta construção social da identidade sexual de tradições sociais e civilizacionais sedimentadas ao longo da evolução da espécie humana para impor um modelo alternativo de identidade de género. Este modelo não anuncia apenas que a cabeça pode e deve mandar totalitariamente no corpo, mas também que a cabeça individual ou coletiva pode ser aquilo que quisermos e decidirmos aqui e agora. O Erro de Descartes levado ao extremo.
Com o correr do tempo,
o dogma cartesiano ultrapassou largamente o campo filosófico ou científico no
qual surgiu para se sedimentar na vida social e cultural habitual, assumindo
variantes crescentemente radicalizadas no campo das ideologias e das práticas
políticas, até porque não existem descontinuidades entre o sujeito individual e
o sujeito coletivo. O que temos hoje é uma doença civilizacional gravemente
carente de uma terapia pós-cartesiana, ou mesmo anti-cartesiana, que tem na
ciência ou na política os seus alvos por excelência.
É na perspetiva
cartesiana que compreendemos a lógica racional ou estatística com
que os governos, desde o século XX, se viciaram em orientar a vida dos povos,
ao mesmo tempo que desprezam as tradições históricas e identidades seculares
desses mesmos povos. É por isso que vivemos mergulhados numa distopia política
por tomarmos como normal que os governantes alienem as emoções do
sujeito coletivo ou os sentimentos dos povos, incluindo a sua
religião e tradições seculares herdadas, para submetê-los à ditadura da
razão universal ou globalista. Tal orientação mental conduz a erros
inevitáveis no que se entende por responsabilidade social, como se a mesma não
devesse obrigatoriamente incluir o respeito por emoções e sentimentos coletivos
específicos de cada povo, assim como conduz a erros inevitáveis na
perspetivação do futuro das sociedades.
Essa é a característica
dos autoritarismos e totalitarismos de esquerda ainda vivos, enquanto à direita
o vício ficou circunscrito a um espaço e a um tempo precisos, à Alemanha
dominada pelo totalitarismo nazi (1933-1945), e não se prevê que venha a ter
sequelas.
O fenómeno revela a
persistência da tradição medieval, ainda que virada de cabeça para baixo. Na
idade média (séculos V-XV) a fé religiosa (ou a emoção)
cegava a razão e, a partir do século XVII, entramos na era da razão
cegar a emoção, o que se tornou saliente com a Revolução Francesa (1789)
e com a expansão de Napoleão (inícios do século XIX), porém o zénite foi
atingido nos regimes totalitários do século XX, o comunismo (1917…) e o nazismo
(1933-1945).
Recusar obstinadamente
retomar as emoções positivas do sentimento nacional, teimar na recusa do patriotismo
e o nacionalismo, reflete com especial clareza o prolongamento no tempo
d’O Erro de Descartes contra o qual, no campo da ciência, António
Damásio combate há três décadas. Na política, só a Nova Direita investe no
mesmo caminho. A direita moderada e sobretudo a esquerda no seu conjunto, da
moderada à radical, mantêm-se na senda cartesiana recusando-se respeitar a
plenitude da condição humana, recusando-se admitir a complementaridade entre a razão
e a emoção dos sujeitos coletivos, recusando-se reconhecer a função
insubstituível da identidade dos povos historicamente instituída.
A disputa vai persistir
enquanto a esquerda não estiver consciente da sua doença cartesiana,
patologia mental que se designa por anosognosia. Recomendo vivamente a
leitura de António Damásio que, na substância, coincide com o pensamento de
Jordan Peterson.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Vice-Presidente do CHEGA!, 17-12-2020
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