Pretender que os seres humanos são
assexuados e que tudo o mais é uma “construção social” é roubar aos nossos
filhos algo de muito importante: às meninas, serem meninas; e aos meninos,
serem meninos
José Manuel Fernandes
Nesta sexta-feira uma pequena
notícia tornou-se uma das mais lidas do Observador. Dava ela conta que dois
médicos e uma professora de direito tinham publicado, numa prestigiada revista
científica dos Estados Unidos – a New England Journal of Medicine – um texto de
opinião onde se defendia que as certidões de nascimento não devem incluir sexo do bebé porque tal pode
ofender as pessoas transgênero. Um dos argumentos é que essa referência não
oferece qualquer vantagem clínica, e é provavelmente o único argumento com que
concordarei no texto – de facto não estou a ver nenhum pediatra a pedir para
ver a certidão de nascimento para saber de que sexo é um bebé, pois mais
depressa espreitará para dentro da fralda.
Mas a chegada de artigos como
este não apenas a revistas científicas da área das ciências sociais – onde há
décadas se financiam os “estudos de gênero” e se elaboram as mais desvairadas
teorias –, mas também a publicações médicas começa a ser inquietante. Até
porque entre os argumentos do texto se desenvolve a ideia de que,
biologicamente, a definição do sexo é algo extremamente complexo e não binário.
Vamos lá ver se nos entendemos.
O facto de existirem, segundo os autores, 1 em 5 000 pessoas com variações
intersexo apenas nos coloca perante excepções que fazem parte da natureza das
coisas. Para ser mais exato, perante excepções que fazem parte da própria
natureza da reprodução sexuada.
E aqui chegamos a um ponto
importante, a um ponto que coloca estes novos apóstolos no mesmo terreno
daqueles que há mais de quatro séculos negavam que a Terra girasse em torno da
Lua: eles querem que a Natureza, neste caso a Biologia, vá ao encontro do seu
preconceito social e ideológico, e por isso não querem aceitar que existam leis
que regem o mundo natural. Isto porque para eles tudo é uma “construção social”
– incluindo saber se somos homem ou mulher.
Como sabemos, este “debate”
começou com a distinção entre “sexo” e “gênero”. Dou-a (por hoje) de barato. O
sexo é determinado pela nossa biologia, o gênero pelas nossas preferências
sexuais. Desde que falemos de adultos e de atos consentidos, nada a opor às
preferências sexuais.
Tudo se complica, e muito, quando deixamos de falar de adultos, e suspeito que é por isso, e por causa dos debates em torno dos transgêneros, que de repente também se começou a pôr em causa a natureza binária da própria biologia.
Acontece, porém, que a
existência de dois sexos é a essência da reprodução sexuada, e isso é válido
tanto para nós, seres humanos, como para a generalidade dos seres vivos mais
complexos e evoluídos, o que inclui a maior parte das plantas – sim, das
plantas, como sabe qualquer criança a quem ensinaram a importância das abelhas
na polinização das flores.
Mais: a reprodução sexuada é
porventura menos eficiente para assegurar a rápida reprodução de uma espécie
(basta pensar no nosso conhecido SARS-CoV-2, que não chega bem a ser um ser
vivo, e não se reproduz por reprodução sexuada), mas milhares de milhões de
anos de evolução das espécies indicam-nos que ela permite o grau de
variabilidade de geração para geração que não só assegura a sobrevivência
quando ocorrem grandes alterações ambientais, como o aparecimento de seres cada
vez mais complexos. É também a reprodução sexuada que garante que todas as
gerações são diferentes das gerações precedentes, pois houve mistura dos genes
entre machos e fêmeas e não apenas uma ação aleatória de mutações.
Como também sabemos, neste
processo de cópia de genes ocorrem por vezes erros, mesmo com os cromossomas X
e Y que determinam o sexo, e por isso é possível identificar muitas anomalias,
a maior parte delas minúsculas e virtualmente indetectáveis, em homens que
sempre foram homens e em mulheres que sempre foram mulheres. Citar, como fazem
os autores, estudos onde se referem casos onde, por exemplo, uma
mulher ao fazer exames para ter o seu terceiro filho, aos 46 anos, percebeu que
uma parte das células do seu corpo tinham cromossomas XY em vez de terem
cromossomas XX como se esperaria, apenas mostra que a Natureza às vezes se
engana, mas nada muda em relação ao mais importante: a nossa espécie, para sobreviver,
precisa de continuar a ter homens e mulheres, pois precisa de continuar a viver
e a reproduzir-se sexuadamente. Tão simples como isso, a não ser que queiramos
passar aos pesadelos distópicos em que tudo é gerado em provetas.
Mais: como sucede com as
outras espécies, e com os primatas em particular, as diferenças entre homem e
mulher não se limitam a terem uma genitália diferente. Ou a produzirem hormonas
distintas. É um mito, e um mito perigoso para as mulheres, a ideia de que todas
as diferenças que existem resultam apenas de uma “construção social” e que, por
isso, tudo se resolve com quotas e leis. Uma coisa é resolver o que são
desigualdades reais – as desigualdades salariais, por exemplo –, outra bem
diferente é pretender que as mulheres em circunstâncias idênticas façam as
mesmas opções dos homens, ou os homens as mesmas opções das mulheres, sobretudo
se pretendermos que isso seja imposto administrativamente.
Ora, quando chegamos às
certidões de nascimento, ou quando chegamos – como chegamos no Canadá, por
exemplo – a normas de tratamento que têm de ser, como lá se designa, “gender
neutral”, então começamos a chegar a um ponto em que pretendemos que as meninas
deixem de ser meninas e os meninos deixem de ser meninos. Atenção: não falo de
vestir uns de cor-de-rosa e outros de azul, de inscrever necessariamente os
rapazes no clube de futebol e as raparigas nas de ballet. Esses estereótipos
pertencem a outras gerações.
Agora aquilo que estes novos ativistas
pretendem são estereótipos de sinal contrário, é um desconstrutivismo social e
cultural que deixe os nossos filhos sem quaisquer referências, pois no fundo
acreditam no mito do “bom selvagem” de Rousseau. E acreditam nesse mito porque
detestam tudo o que tem a ver com o nosso mundo e a nossa civilização.
Ora, aquilo que temos de ter
bem presente é que a nossa biologia, a que vem codificada nos genes do Homo
sapiens – e nós ainda nascemos com genes, convém não esquecer –, é uma
biologia sobre a qual a seleção natural nunca deixou de atuar ao longo dos milênios
e que nos dotou de virtudes e defeitos que só por via de estritas regras
sociais nos permitem viver em paz e em sociedades progressivas. Ou seja, se
alguma “construção social” fomos erguendo em cima da nossa biologia, foi para
fazer de nós melhores seres humanos. Mas nunca deixámos de ser Homo
sapiens, homens e mulheres, mesmo com umas trocas pelo meio.
Título e Texto: José Manuel
Fernandes, Observador,
20-12-2020
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