Aparecido Raimundo de Souza
CLARISSA VINHA BRINCANDO com a
pequena Penélope, sua filhinha de seis anos, em meio a um batalhão de cabeças
que cruzavam, apressadas, entravam e saiam de lojas comerciais enquanto outras
corriam desembestadas para embarcarem em carros particulares, táxis e ônibus
que tomavam conta de toda a extenção da avenida Nossa Senhora de Copacabana, na
altura da rua Bolivar.
Marcelo seguia em sentido quase
igual. Saíra de um restaurante na Rua Tonelero —, com a Siqueira Campos e fazia
o trecho a pé —, até a portaria de seu prédio, na rua Raimundo Correia.
Clarissa, entretida com a menina —
ora se agachava —, ora se punha em ação numa série de pulinhos cadenciados —,
totalmente enleada e absorta naquele mundo infantil, não se importando muito
com o sol a pino pegando em cheio, castigando fortemente toda a extensão da
avenida que fervilhava como se fosse uma réplica da famosa Times Square, no
coração de Manhattan.
Marcelo parou numa banca de jornais
na Praça Serzedelo Correia para se ater às notícias penduradas à visitação dos
curiosos que iam e vinham numa quase corrida intermitente. Optou levar consigo
um periódico menos sensacionalista. Pagou o exemplar ao senhor de cabelos
brancos e óculos fundo de garrafa que o atendera e continuou.
Clarissa resolveu dar uma pausa numa
lanchonete. Pediu um suco de polpa de manga com bastante açúcar e gelo e, para
a jovenzinha, um refrigerante em lata e um canudinho.
Marcelo passou os olhos ligeiros nas
principais manchetes e voou para as páginas de esportes. À medida que se
inteirava dos acontecimentos, diminuía os passos. De vez em quando, desviava os
olhos —, um ou outro transeunte esbarrava aqui e ali —, pedia desculpas polidamente.
Ele ensaiava um sorriso franco que deixava à mostra uma arcada de dentes muito
branca e perfeita, como dados sem marcas.
Clarissa acabara de tomar o suco e
esperava que Penélope terminasse o seu. Sentara diante da garotinha, num banco
alto, cuidava para que ela não se virasse, de repente e fosse ao chão.
Marcelo estancou os passos. Os que
vinham logo atrás se desviavam rapidamente. Parecia furioso, ou melhor, ficara
meio fora de si depois que tomara conhecimento que seu time havia sido rebaixado
para a segunda divisão, apesar do técnico garantir que a sombra negra dessa
figura dolorosa estivesse longe de atingir (de novo) aquela equipe de
profissionais.
De nada adiantou a concentração em
Petrópolis, os treinos longe dos olhos ávidos da imprensa, as táticas e métodos
diferenciados, sem falar no estádio do Maracanã lotado até as bordas. Os
resultados do placar final trouxeram um desfecho desastroso, deixando toda a
torcida à beira de um ataque de nervos. Num ímpeto de raiva amassou o jornal. Porém,
logo se controlou e voltou a ficar de bem com a vida.
Clarissa acabara na lanchonete.
Penélope ainda se deleitava com um restinho de sua bebida. Não parecia ter
pressa de chegar ao final. Mãe e filha, apesar disto, empreenderam a marcha, a
passos lentos, o sol um pouco mais brando, não o suficiente para permitir a
acomodação das vistas à ordem natural das coisas que aconteciam em derredor.
Mariana, uma amiga dos tempos da
faculdade na Estácio de Sá, em Bonsucesso, interrompeu momentaneamente a marcha
das duas. Ambas se abraçaram. Trocaram beijos. Depois chegou a vez de pegar no
colo a engraçadinha e espavorida Penélope e, igualmente, a cobrir de afagos e
mimos.
Marcelo queria explodir. Uma dor de cabeça forte e incômoda apareceu estranhamente do nada e permaneceu sem dar tréguas.
— Maldito técnico. Incompetente! Deveriam colocar alguém de garra, de fibra, um sujeito que levantasse a moral, não só do time, como de toda a galera que torce por esta droga de time de pernetas.
Clarissa se despediu da amiga. Trocaram endereços e telefones, com a promessa veemente de ligarem uma para a outra, durante a semana e marcarem um dia qualquer para um lanche com a finalidade de colocarem as fofocas em dia:
— Estou em casa, sempre depois das 17 horas. Não esqueça!
— Beijos, amiga. Amei encontrar vocês duas.
Marcelo espiou à sua retaguarda um instante. Alguém chamara seu nome. Não distinguira de onde viera o som da voz, ou quem seria a sua protagonista. Coçou a cabeça. Parecia um sujeito abobalhado vendo um carro que estivesse pensando em comprar. Possivelmente sua imaginação lhe pregando novas peças.
Neste interregno, Clarissa brincando, saltou alegre, de costas, à atenção nas proezas da garotinha. Decidiu abrir os braços e ir de ré, a maneira retrógrada, sem se importar com os que vinham logo atrás, em sentido oposto.
Chocou o traseiro com tudo, em cheio, a bundinha empinada (como Napoleão ao perder a guerra) na altura das genitálias do loiraço saradão. Ao vê-la, naquela posição engraçada, o rapaz soltou um ‘ai’ e, em seguida, se desmanchou numa gargalhada estrondosa que a deixou corada e sem ação:
— Desculpe, moço. Foi sem querer...
Marcelo, rindo com a situação criada pelo encontrão, se desmanchou em mesuras. A ousadia daquele gesto inocente, todavia, despertou seus desejos de macho à beira de um ataque de coisas lindamente pecaminosas. Sem contar que a beldade, toda ela, um pedaço de caminho pronto para ser percorrido, despertava inclinações despudoradas as mais avassaladoras.
Parecia, a criatura angelical, ter saído de um cartaz desses filmes que contam histórias de amor à primeira entropicada. Falou:
— Pois eu adorei. Quem dera recebesse um esbarrão destes todos os dias. Juro que seria o cara mais feliz na face da terra.
Marcelo, os olhos verdes sobressaindo o bastante para agradar a qualquer mulher que se sentisse sozinha e desprotegida, procurou alguma coisa no bolso da camisa. Achou. As balinhas que recebera junto com o troco do almoço. Estendeu à menina que aceitou, de imediato:
— Como é seu nome?
— Clarissa e o seu?
— Marcelo de Almeida. Encantado, senhorita, acredite.
— Envergonhada com a cena. Desculpe. Nem sei onde meter a cara...
— Esquece. Imprevistos acontecem.
Apontou Penélope que se divertia tentando tirar o papel dos doces:
— Sua?
— Sim.
— Casada?
— Não...
— Mãe... Mãe solteira?
Clarissa balançou a cabeça afirmativamente.
Marcelo aproveitou a ocasião e soltou uma cantada enquanto prestava atenção num outdoor de uma loja famosa. Pensou, também, em seu peito frangalhado pelo time que perdera de quatro a um: ‘Vai que depois do evento de ter colado as partes com esta linda fêmea de fechar o comércio, a sorte volte a me sorrir e eu acabe me dando bem?’. Mandou brasa:
— Neste caso, minha deusa poderemos nos ver de novo?
Clarissa sorriu um sorriso franco e devolveu a resposta, na lata, sem titubear:
— Se você quiser...
— Me daria seu número de telefone, e outras abalroadas, se eu pedisse? Brincadeirinha... Não me leve ao pejorativo de um sujeito deseducado...
Risos, de ambos os lados:
— Engraçadinho...! Claro... Tudo bem. Seria um prazer...
Trocaram WhatsApp, tiraram algumas fotos juntos e um amontoado de palavras melosas.
À noite, de fato, Marcelo ligou. Clarissa morava perto dele, ou mais precisamente na rua Sá Ferreira. Por volta das oito (ela deixou a filhinha com a mãe). Saíram para uma seção de cinema no Roxy. Desde então, não mais deixaram de se ver.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 24-11-2020
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Uma historinha simples e singela, rotulada como 'água com açúcar', porém o autor nos mostra claramente que o amor está no ar, livre, leve e solto, à espera, pronto para ser encontrado e vivido.
ResponderExcluirCarina
Ca
Porto Alegre RS